quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Colisão na Itália: Tragédia em Tarquínia, 1944

Autor: Joaquim Domingues

O texto a seguir foi baseado nos documentos oficiais que compõem a investigação do acidente ocorrido na Itália no dia 16/novembro/1944.

A volumosa documentação foi gentilmente cedida pelo Luis Gabriel do site “Sentando a Púa”, a quem agradecemos.

Depois de traduzidos e ordenados na sequência dos acontecimentos, revelam os detalhes de uma tragédia que marcou profundamente nosso 1º Grupo de Caças durante a Segunda Guerra Mundial.


Na manhã de 16 de novembro de1944, pousou na base de Tarquínia, Itália, o C-47 da USAAF nº 42-24213, pilotado pelo 1º Ten. Ralph H. Bailey, levando a bordo oito pessoas entre tripulantes e cinegrafistas.

A base de Tarquínia

Sua missão, filmar e fotografar em voo, os P-47s da FAB, ali estacionados. As imagens seriam usadas para documentar e difundir as operações de guerra do Esquadrão Brasileiro.

Por volta das 13h, o Capitão Newton Lagares Silva promoveu um briefing com todos os envolvidos, destacando os seguintes pilotos para a formação que seria filmada:

1º avião: Capitão Newton Lagares Silva (Flight Leader)

2º avião: 2º Tenente Luiz Felipe Perdigão M. da Fonseca (wingman of Flight Leader)

3º avião: 2º Tenente Rui Moreira Lima (Element Leader, voando à esquerda do Lagares)

4º avião: 2º Tenente Marcos Eduardo Coelho de Magalhães (wingman of Element Leader)

O plano de manobras seria o seguinte:

O C-47 subiria até 1.500 metros e começaria a voar nivelado e reto, paralelo à costa, rumo sul, com o sol no seu lado direito.

P-47D do Ten. Perdigão

A porta lateral do Douglas - aberta - serviria para os cinegrafistas com suas câmeras montadas, captarem as imagens. Assim sendo, ficou estabelecido que os P-47s fariam seis passagens pelo lado esquerdo do C-47, mantendo 20 metros de distância. As passagens seriam executadas sequencialmente, alterando os estilos de formação e níveis de voo em relação ao C-47.

Também ficou acordado que os Tenentes da FAB Waldir Paulino Pequeno de Melo e Rolland Rittmeister fariam parte da equipe do C-47, aproveitando a oportunidade para fazer fotografias.

O dia estava claro com teto e visibilidade ilimitada “CAVU” - Ceiling and Visibility Unlimited, como é dito no jargão dos meteorologistas.

Os Tenentes Rolland Rittmeister (esquerda) e Waldir Paulino Pequeno de Melo (direita), morreram no triste acidente


Naquilo que seria um voo de exibição, por volta das 15h, os quatro P-47s decolaram, fazendo inicialmente alguns círculos em torno do campo, enquanto aguardavam o C-47 tomar sua posição e rota previamente estabelecidas.

Em seu relatório, redigido após o ocorrido, o Capitão Lagares explica que ao chegar a 270 metros, à esquerda do C-47, ele se preparou para a primeira passagem.

!º Tenente Luiz Felipe Perdigão Medeiros da Fonseca

Quando chegou a 45 metros, ficou tenso ao observar que o Douglas iniciava uma curva para a esquerda, talvez por causa do sol ou, talvez, porque o piloto do C-47 quisesse ver melhor os quatro caças, que se aproximavam à sua esquerda.

Naquele momento, com os Thunderbolts voando a 320 km/h e já muito perto do C-47, o Capitão Lagares não conseguiu fazer uma curva fechada o suficiente para limpar sua direita e livrar o 2º avião (seu wingman Perdigão) da asa do C-47.

P-47 decolam da pista de Tarquínia, de terra e revestida com placas de aço perfuradas


Mesmo fazendo uma curva para a esquerda a mais apertada possível, não foi o suficiente para evitar que a asa direita do avião à sua direita batesse na ponta da asa esquerda do C-47.

Imediatamente, o C-47 acentuou sua curva para a esquerda, já com o nariz para baixo, enquanto o P-47 fazia uma curva para a direita, perdendo altitude. Instantaneamente, a formação toda se desfez.

Lagares gritou pelo rádio para o piloto saltar, ao mesmo tempo que girava seu avião em torno do P-47 danificado, observando e acompanhando o salto do homem até o solo. Com isso, ele perdeu o C-47 de vista.

Um Douglas C-47 preservado nos Estados Unidos, muito semelhante ao acidentado em Tarquínia


Aproximadamente às 15h40, o Capitão Lagares pousou, juntamente com o nº 3 (Rui), sendo que o nº 4 (Coelho) já havia pousado antes.

A colisão aérea resultou numa tragédia. Todos que estavam a bordo do C-47 morreram: os dois oficiais da FAB, Tenentes Waldir Paulino Pequeno de Melo e Rolland Rittmeister e os oito aviadores e fotógrafos da USAAF: Capitão Harold B. Bollerman, Tenentes Ralph H. Bailey, Thomas W. Clark, Casimar Karas e os Sargentos Marten A. Jones, Joe B. Kline, Glen A. Voltz e Richard B. Forxes.

Nessa 1ª imagem os P-47 brasileiros chegando próximo ao C-47, conforme instruções e definições do briefing “in four finger formation”. A formação deveria seguir pela costa, rumo sul, com o sol à direita.
A porta lateral do Douglas estava aberta para os cinegrafistas e fotógrafos captarem as passagens dos caças.
O fundo da imagem é exatamente o lugar onde aconteceu a tragédia. (imagem obtida no Google Earth). Abaixo das silhuetas dos aviões do Coelho e Rui, pode-se ver a antiga e abandonada pista de Tarquinia Airbase. Ela ainda está lá!


O acidente, que causou profunda comoção em todo o Grupo, foi minuciosamente investigado e posteriormente classificado e arquivado como “Restricted and Secret” pelo oficial de operações do 64th Troop Carrier Group, base do C-47 sinistrado.

Com ajuda do site “Sentando a Púa”, do sempre entusiasta Luis Gabriel, “Contos do Céu” teve acesso a um calhamaço de documentos que compõem toda investigação e cujos detalhes impressionam, pois foram redigidos ao calor e emoção dos fatos recém ocorridos.

Nessa 2ª imagem, o C-47 vira à esquerda, ocorrendo a colisão com o avião do Perdigão, e desfazendo a formação.


Em seu depoimento, o 2º Ten. Rui Moreira Lima (avião 3) explica que, quando o Flight Leader passou pela porta do C-47, viu o Douglas fazendo uma curva de pequena inclinação para a esquerda, indo bater na asa direita do P-47 do Ten. Perdigão (avião 2). Isso confirma o relato do Capitão Lagares.

O Ten. Rui acrescenta que, após certificar-se que o piloto do P-47 havia saltado, voltou a olhar para o C-47 e viu seu mergulho final até atingir o solo numa grande explosão.

Nessa 3ª imagem, a versão dos oficiais do Air Corps, com a tese da colisão do P-47 do Perdigão com a parte direita do C-47. Controverso.

Registrou também ter visto, uma asa de P-47 volteando pelos ares.

Confirmando os relatórios do Lagares e do Rui, o Ten. Coelho (avião 4) relatou que viu o momento em que o seu Líder (provavelmente Lagares) fez uma manobra brusca e evasiva, enquanto o C-47, bem na frente do Perdigão, manobrava para a esquerda. Continua o Coelho: “depois disso, vi o Perdigão batendo na asa esquerda do C-47, fazendo-a saltar fora”.

Certamente, o acidente causou um grande mal-estar nas forças e isso pode ser verificado nos documentos.

Um deles, datado de 28/novembro/1944, assinados pelos Capitães Francis G. Buchanan, Ivan L. Hale e Roger D. Coleson, oficiais de análises de acidentes de aviões do Air Corps, declara que o Ten. Perdigão voou em direção ao sol e foi cegado.

O Roberto Celegatti nos premiou com uma de suas aviation arts, especialmente para essa publicação em Contos do Céu. O instante dramático da colisão aérea entre o Thunderbolt brasileiro e o C-47 da USAAF.


Ainda no mesmo documento é informado que: “o P-47 brasileiro colidiu com o C-47 sob a asa direita, cortando-a entre a nacele e a fuselagem. O motor direito, o trem de pouso direito estavam soltos e a hélice estava arrancada do motor direito. O C-47 imediatamente girou para terra e explodiu, matando todos a bordo”.

Em outro documento, datado de 16/dezembro/1944, o Capitão Francis G. Buchanan faz uma afirmação ainda mais contundente. Diz ele:

“Após uma investigação minuciosa, foi constatado que a asa direita do C-47 foi separada da fuselagem pelo P-47 brasileiro, e não a asa esquerda, como afirmam testemunhas brasileiras. As fotografias anexas são apresentadas como provas que sustentam minhas declarações. Quaisquer afirmações conflitantes com o acima estão erradas”.

Caminhão leva os pilotos até aos aviões

Tais declarações afrontam os relatórios dos três oficiais da FAB que participaram do voo e torna a questão ainda mais conflitante. Afinal o que estaria fazendo o Ten. Perdigão à direita do C-47?

Ficou faltando uma peça fundamental no documento de Buchanan: apresentar as fotos dos destroços da asa esquerda do P-47 do Perdigão. Mas, para colidir com a asa esquerda, no lado direito do C-47, só se ele (Perdigão) estivesse voando de dorso (invertido!), o que é muito improvável.

Curiosamente, como testemunha no solo, o Ten. Leon R. Lara de Araújo da FAB, relata que viu o C-47 girar para direita, aparentemente com as duas asas intactas e algo caindo perto dele (a asa do P-47?). Por um breve momento o Douglas parou o giro, como se o piloto tivesse readquirido o controle, mas depois voltou a girar para a direita, indo até o solo.

Em paralelo, foram tomados depoimentos de várias testemunhas, inclusive do pessoal da RAF que estava na torre de controle de Tarquinia Airbase naquele dia. Mas, esses documentos nada acrescentam, pois todos afirmam que pouco ou nada viram, a não ser destroços volteando pelos ares.

A declaração mais importante, e que também está anexa à investigação, é a do próprio Ten. Perdigão, envolvido diretamente no terrível acidente.

Seu relatório, feito no mesmo dia da tragédia, embora sucinto e resumido, confirma a colisão com sua asa direita. Escreveu ele: “Eu estava voando na posição número dois, em quatro aviões, quando de repente minha asa direita sofreu um impacto terrível. O que fez com que meu avião fizesse um giro para o solo, por assim dizer, no ar. Imediatamente saltei para fora”. E foi só isso.

Pista de Tarqínia em 1944


Por fim, em 25/janeiro/1945, após detida análise dos relatórios, provas e evidências do acidente, o Tenente Coronel Nero Moura, Capitão Oswaldo Pamplona Pinto e Capitão Lafayette C.R. Souza, assinaram um documento em conjunto, enviado ao Headquarters Army Air Force.

O teor é o seguinte: “O P-47 perdido era o nº 2 de uma formação de quatro, que seriam filmados a partir de um C-47 que deveria voar reto e nivelado. Ao contrário do que havia sido planejado, o C-47 fez uma curva em direção à formação, no momento que estava muito próximo para a primeira passagem. Como o Douglas estava no sol, o Líder não conseguiu observar sua manobra imediatamente. Toda a formação fez uma viragem para evitar a colisão, mas a asa direita do P-47 bateu na asa esquerda do C-47”.

Essa tragédia impactou profundamente o 1.º GAvCa que, não obstante as irreparáveis perdas, seguiu resoluto com sua missão na guerra.

Custou a vida de dez jovens que se esforçavam para legar à história e à posteridade, rica documentação sobre as operações do 1º GAvCa na Segunda Guerra Mundial, elevando, ainda mais, o respeito e admiração por aqueles homens que viveram dias difíceis.

Imagine as imagens espetaculares e únicas, que se perderam e que jamais veremos.

Pesquisa e texto de Joaquim Domingues, Contos do Céu.

AERONAVES ENVOLVIDAS NO ACIDENTE:

USAAF 44-19659:  Republic P-47D-28RE, c/n 5067, entregue novo à USAAF em 17/07/1944, repassado à  FAB em 28/10/1944, cor camuflagem oliva/cinza; acidentado em 16/11/1944 em Tarquínia com perda total.

USAAF 42-24213: Douglas C-47A, c/n 10075, entregue novo à USAAF em 1943, cor camuflagem oliva/cinza; acidentado em 16/11/1944, em Tarquínia, com perda total e 10 vítimas fatais.

Um comentário:

  1. Esse acidente sempre me chamou atenção e sobre o qual nunca consegui maior detalhamento. Isso, até por as mãos nos relatórios oficiais. A tradução e ordenamento dos fatos revelou toda a extensão da tragédia. Agradeço a Cultura Aeronáutica por ajudar na restauração dos fatos.

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