A aviação comercial é uma atividade segura, graças, em parte, a um processo de avaliação governamental, a certificação, outrora denominada homologação, que somente libera uma aeronave, ou seus componentes, para atividade remunerada, após uma ampla e rigorosa avaliação das autoridades, sob as mais críticas situações previsíveis, algumas das quais muito remotas.
Aeronave Airbus A320, certificada em 1988 e ainda em produção |
O mesmo processo torna o fabricante altamente responsável pelo produto que lançou no mercado, mesmo que décadas se passem entre a fabricação da aeronave e um possível acidente ou incidente.
Entretanto, esse mesmo processo, caro e demorado, pode retardar, inibir ou até mesmo impedir que os avanços tecnológicos sejam implantados no processo de produção de novas aeronaves, motores e componentes, sob o argumento falacioso de "manter a segurança".
A aviação é considerada, em geral, como fonte de novas tecnologias, de avanços técnicos, que depois passam a ser empregados em outros ramos da indústria. Isso é verdade, mas somente em parte. De fato, alguns setores de aviação fornecem produtos altamente obsoletos tecnologicamente. Por outro lado, grandes fabricantes de aeronaves, motores e componentes empregam a manobra empresarial denominada obsolescência programada, para se livrar da responsabilidade crescente sobre aeronaves antigas, com tecnologias obsoletas, e fazem o possível para tirar tais aeronaves antigas de operação.
Aeronave Boeing 737-800, certificada em 1994, ainda em produção |
Vamos analisar, primeiro, a questão dos setores que evitam o alto custo de desenvolvimento e certificação, assim como o risco que trazem, mantendo produtos notoriamente obsoletos, mas certificados, no mercado, geralmente sob a proteção de esquemas oligopolizados.
O mercado mundial de motores a pistão para a aviação leve, por exemplo, é dominado, no ocidente, por dois grandes fabricantes, Lycoming e Continental. Esses fabricantes vivem mudando de donos, no mundo empresarial, mas fornecem ao mercado uma gama de motores a pistão, altamente obsoletos, mas utilizados pela maioria dos aviões leves em produção.
O problema desses motores é que utilizam uma tecnologia muito obsoleta. São motores, sem dúvidas, seguros, confiáveis e de boa qualidade, mas a sua tecnologia remonta, em geral, há seis ou sete décadas atrás. Utilizam tecnologia há anos considerada obsoleta pelos fabricantes de motores automotivos, como o uso de magnetos de ignição, platinados, refrigeração a ar, carburadores e outras coisas que deixariam qualquer usuário de automóvel moderno totalmente perplexo.
Motor Lycoming IO-540, certificado em 1957 e ainda em produção |
Um dos motores aeronáuticos a pistão mais utilizados atualmente é o Lycoming IO-540. Trata-se de um motor de seis cilindros horizontalmente opostos, de 8,9 litros de cilindrada, e que desenvolve uma potência entre 235 e 350 HP. Tal motor foi desenvolvido em 1957, há quase seis décadas atrás. Seu sistema de injeção de combustível mecânica tinha décadas de existência quando tal motor foi lançado, e ainda é utilizado. Seus "confiáveis" magnetos são praticamente os mesmos magnetos utilizados pelos motores da virada do Século XIX para o Século XX. Seus concorrentes diretos no mercado, os Continental IO-520 e IO-550, possuem praticamente a mesma configuração geral, quase a mesma cilindrada e a mesma potência, e também utilizam os mesmos recursos obsoletos dos motores rivais, como injeção mecânica e magnetos de ignição. Tais motores, ainda por cima, mesmo que utilizem taxas de compressão relativamente baixas, ainda são dependentes das poluentes e caras gasolinas de aviação, cujo uso, por motivos ambientais, já deveria ter sido banido há décadas, devido ao uso de aditivos com metais pesados, como o chumbo tetraetila.
Por que os motores de avião a pistão usam essa tecnologia obsoleta, até arcaica, sem injeção/ignição eletrônica, de baixa eficiência, de alto consumo de combustível e que, ainda por cima, são muito caros? Simples, é por mera questão de certificação, aliado a um domínio oligopolizado do mercado. Sob a proteção da lei, por que a Lycoming e a Continental iriam lançar produtos inovadores no mercado, se serão responsáveis pela segurança desses motores 40 anos após serem fabricados? Esse é um grande dilema. Quem perde com isso é o consumidor, e o meio ambiente. E será que esses motores são realmente tão seguros assim, a ponto de ter seu desenvolvimento praticamente congelado no tempo?
O exemplo dos motores é meramente ilustrativo. Muitos outros componentes e até aeronaves inteiras, ainda fabricadas, são obsoletos sob qualquer ponto de vista, mas sobrevivem sob o grande "guarda-chuva" denominado certificação. Será que tais normas de certificação não estão, também, tão obsoletas quanto os produtos que elas certificam?
O outro lado da moeda está presente em outro lado da aviação, mais inovador, o da aviação comercial e das aeronaves de grande e médio porte.
Os fabricantes de aeronaves utilizadas na aviação comercial utilizam a mais alta tecnologia, ao invés dos seus colegas que fabricam aeronaves leves, pois seus clientes exigem, cada vez mais, aeronaves e motores mais eficientes, mais leves, mais seguras e mais automatizadas, pois isso influi diretamente no seu lucro. O problema é que, praticamente, esses fabricantes estão sujeitos às mesmas regras de certificação e, pior ainda, o risco que enfrenam é consideravelmente maior.
Aeronave Boeing 737-300 |
Economicamente falando, o setor da indústria de aeronaves comerciais é dominado por apenas três grandes fabricantes, em nível mundial: Boeing, Airbus e Embraer. Embora sejam fortes rivais entre si, há sérios indícios de que o setor é altamente oligopolizado. Basta ver que utilizam motores de apenas três grandes fabricantes, Rolls-Royce, Pratt & Whitney e General Eletric, ou então de algum consórcio que os três façam entre eles, ainda que incluam algum sócio minoritário. Os processos de certificação, que seguem requisitos estabelecidos pela ICAO - International Civil Aviation Organization, parecem ser feitos sob medida para tais fabricantes, de aeronaves e motores, inibindo a entrada de qualquer concorrente no mercado.
Os processos de certificação embutem uma regra de que, pelo menos do ponto de vista da legislação americana, o fabricante é responsável pelo produto que lançou no mercado durante 40 anos a partir do momento em que foi fabricado. Se isso cria um certo laço de segurança, por outro lado cria uma amarra que, do ponto de vista comercial, pode prejudicar tanto a própria segurança quanto os consumidores, empresas aéreas e passageiros.
Até recentemente, a indústria da aviação não utilizava o conceito deletério da obsolescência programada. Aeronaves são artigos caros, e precisam durar muito para que o seu custo seja absorvido em muitos anos de operação. Mas, por outro lado, não é muito confortável para o fabricante suportar o ônus de se responsabilizar seu produto por 40 anos.
Embora o fabricante estabeleça uma vida útil teórica para uma aeronave, que varia atualmente entre 20 e 30 anos de operação, suficiente para absorver tranquilamente o custo de aquisição da aeronave, qualquer operador que se dispuser a operar uma aeronave um pouco mais antiga vai encontrar problemas, e muitos problemas.
Aeronave Cessna 172, certificada há mais de 50 anos, mas ainda fabricada. |
O pior problema encontrado pelo operador de uma aeronave que tenha mais de 10 anos de uso é a falta, ou o preço, de peças de reposição no mercado. O fabricante, responsável pelo avião por 40 anos, não tem, na verdade, o menor interesse em resolver esse problema. Vamos ver o caso, por exemplo, do Boeing 737 Classic, que engloba os modelos 737-300, -400 e -500. O fabricante, ao que parece, não fornece mais componentes específicos para tais aeronaves, que foram produzidas até o ano 2000, ou cobra um preço absurdamente caro por tais componentes As empresas usuárias desse equipamento se vêm, portanto, obrigadas a utilizar peças usadas, removidas de aeronaves acidentadas ou canibalizadas. Desmontar um avião para manter outros aviões em uso é uma estratégia reconhecidamente cara, e mesmo esse recurso é inibido pelo fabricante, pois a Boeing costuma comprar aeronaves usadas e inutilizar todos os seus componentes, para forçar ainda mais a retirada desse modelo do mercado, o quanto antes possível. A consequência disso é a retirada prematura desse modelo de avião do mercado, ainda que tenha bom histórico de segurança e seja teoricamente rentável. Isso configura, claramente, a utilização da chamada "obsolescência programada" no setor de aviação.
Tudo isso ocorre em função de leis que regulam a certificação, e que, há muito, deveriam ter sido revisadas. As leis visam, teoricamente, a melhorar a segurança, mas nem isso poderá ser alcançado, já que, ao deixar de fornecer peças de reposição no mercado, o fabricante incentiva um crescente mercado paralelo e ilegal de peças não certificadas, que estão invadindo o mercado de modo avassalador. Não é difícil falsificar uma peça aeronáutica, e muito menos a sua documentação. As autoridades aeronáuticas não possuem meios de fiscalizar todos os bilhões de componentes utilizados, e quando fazem alguma constatação, geralmente a fazem quando ocorre um acidente. Aí, já é tarde.
Às vezes a questão da homologação beira absurdos. Por exemplo, muitas peças em aviões pequenos são intercambiáveis com algum veículo terrestre, principalmente no sistema elétrico, mas se o operador usar uma peça não-homologada mesmo que seja absolutamente idêntica à homologada já se incomoda com a ANAC, e dependendo da procedência da peça até a Receita Federal pode criar dificuldades.
ResponderExcluirÉ por isso que companhias que operam aviões antigos falem, alto custo de manutenção...
ResponderExcluirE é igualzinho o que acontece na informática!