domingo, 6 de maio de 2012

Davis-Monthan AFB - o maior cemitério de aeronaves do mundo

Em setembro de 1945, terminou a Segunda Guerra Mundial. Seis anos de tragédia e sofrimento para a humanidade finalmente chegaram ao fim. Logo a seguir, milhares de soldados, unidades militares e equipamentos começaram a ser desmobilizados.
Vista panorâmica do cemitério de aeronaves militares do AMARG
A aviação tinha desempenhado um papel fundamental durante a guerra, e milhares de aeronaves foram produzidas pelos americanos durante os anos em que estiveram envolvidos na guerra. Subitamente, deixou de haver necessidade de tantas aeronaves, e seus tripulantes estavam retornando à atividade civil. Restava, então, uma imensa tarefa: encontrar um destino adequado para essas aeronaves. Muitas sequer tinham sido entregues pelos fabricantes às forças armadas.
Republic F-84 empilhados para venda aos sucateiros, na década de 1960
Antes e durante a guerra, muitas bases aéreas de treinamento foram construídas em lugares remotos, longe da atividade de aeronaves civis e de lugares densamente povoados. Grande parte dessas bases foram construídas nos desertos do sudoeste americano. Uma dessas bases, denominada Davis-Monthan Landing Field, foi construída como aeroporto municipal na cidade de Tucson, Arizona, em 1925. O nome da base homenageou dois pilotos nascidos em Tucson, da época da Primeira Guerra Mundial, que morreram em desastres separados, Samuel H. Davis e Oscar Monthan. Os militares começaram a usar o aeroporto a partir de 1927, e em 1940, o campo foi denominado Tucson Army Air Field. A partir dessa época, o aeroporto civil de Tucson foi realocado para outro lugar. Em 3 de dezembro de 1941, o campo foi rebatizado de Davis -Monthan Army Airfield, às vésperas do ataque japonês a Pearl Harbor.
Impressionante número de aeronaves fora de serviço no AMARG. A maioria jamais voltará a voar novamente
Davis-Monthan serviu como base de treinamento para, pelo menos, 20 unidades de bombardeiros pesados e muito pesados, que utilizavam, principalmente, aeronaves Boeing B-17 Flying Fortress, Consolidated B-24 Liberator, e Boeing B-29 Superfortress, durante a Segunda Guerra Mundial. No fim da guerra, no entanto, tais unidades foram praticamente desfeitas e a situação da base ficou em um impasse, e considerou-se a hipótese de sua total desativação.
Os McDonnell-Douglas F-4 Phanton dominam a paisagem no AMARG
Todavia, como o Exército precisava de locais para armazenar as aeronaves retiradas de serviço ativo, a base foi mantida. O clima seco e de solo alcalino de Tucson era ideal para preservar aeronaves, pois evitava a corrosão das suas estruturas. O solo endurecido possibilitava armazenar aeronaves fora das áreas pavimentadas, mesmo se fossem muito pesadas. Davis-Monthan passou a servir, então, como muitos outros campos no deserto do sudoeste, como cemitério de aeronaves inservíveis, até que se encontrasse um destino final para as mesmas.
Belo exemplar do Convair B-58 Hustler, salvo entre as aeronaves do tipo sucateadas em Davis-Monthan AFB, em 1976.
As atividades de armazenamento e reciclagem das aeronaves militares ficaram a cargo do 4105th Army Air Force Unit. Em setembro de 1945, tais atividades empregavam 11.614 pessoas. Durante essa época, entre junho de 1945 e março de 1946, alguns dos alojamentos da base também serviram como campos de prisioneiros de guerra.
Míssil nuclear de médio alcance Thor, desmontado no AMARC
As principais aeronaves armazenadas em Davis-Monthan foram, inicialmente, os Boeing B-29 Superfortress e os Douglas C-47. Como tais aeronaves tinham grandes chances de reaproveitamento posterior, foram preservadas cuidadosamente. Entre os aviões preservados nessa época na base estavam os dois B-29 que lançaram as bombas atômicas sobre o Japão, em agosto de 1945, o Enola Gay e o Bock's Car.
F/A 18 Hornet armazenados no AMARG
Em 1948, com a criação da United States Air Force (USAF), a base foi redenominada Davis-Monthan Air Force Base (AFB). A unidade que administrava as aeronaves armazenadas foi denominada 3040th Aircraft Storage Depot. Em 1965, o 3040th foi redenominado Military Aircraft Storage and Disposition Center (MASDC), e passou a abrigar todas as aeronaves desativadas das forças armadas americanas. A marinha americana, que tinha mantido, até então, seu próprio cemitério de aeronaves em NAS Litchfield Park, em Goodyear, Arizona. Em fevereiro de 1965, cerca de 500 aeronaves da Marinha, Fuzileiros Navais e Guarda Costeira, fora de serviço, foram deslocadas para o MADSC. A NAS Litchfield Park foi desativada em 1968, e virou um aeroporto civil. Continuou a servir como cemitério de aeronaves, agora civis, e até hoje mantém tal atividade, como destino final de aeronaves comerciais.
Aeronaves salvas da destruição e agora expostas no Pima Air & Space Museum
Ao redor da base, foram se estabelecendo, gradativamente, empresas civis de processamento de metais reciclados, assim como um Museu, o Pima Air & Space Museum, aberto ao público em maio de 1976. O Pima Museum tornou-se um dos maiores museus aeroespaciais do mundo, com mais de 300 aeronaves em exposição, muitas delas de grande porte e raras, como os Boeing B-52, Convair B-58 Hustler, Lockheed SR-71A Blackbird, Lockheed Constellation, Boeing KC-97, Convair B-36 Peacemaker e outras igualmente muito interessantes.

Na década de 1980, o MASDC passou a servir como centro de reciclagem de antigos mísseis balísticos intercontinentais nucleares (ICBM - Intercontinental Ballistic Missiles), sendo redenominado Aerospace Maintenance and Regeneration Center (AMARC), para refletir sua real função.
Fim da linha para os Lockheed Galaxy C-5, no AMARG
Normalmente, Davis-Monthan armazena somente aeronaves militares. Eventualmente, aeronaves civis aparecem por lá, no entanto. Durante a década de 1980, o Departamento da Defesa iniciou um programa de remotorização dos aviões-tanque Boeing KC-135 Stratotanker, para um modelo denominado KC-135E. Os Boeing KC-135 são originários do mesmo protótipo que originou os Boeing 707, e mostraram ser excelentes aviões-tanques, exceto quanto à motorização. Equipados com motores turbojatos Pratt & Whitney J-57-P59W, que desenvolviam 10.000 lbf de empuxo seco e 13.000 lbf de empuxo "molhado" (com injeção de água), essas aeronaves tinham sérias restrições de peso e de consumo, além de não serem equipadas com reversores de empuxo.
Alguns Boeing 707 civis comprados para o Programa KC-135E
Quando as empresas aéreas passaram a substituir suas frotas de 707 por aeronaves mais modernas, entre o final do anos 70 e começo dos anos 80, a Força Aérea começou a adquirir, agressivamente, todas as células disponíveis no mercado, por preços que variavam de US$ 850.000 A US$ 950.000, dependendo da condição geral do avião. 
Restos de aeronaves vendidas à Southwest Alloys. Notem o Boeing 707 antes operado pela Transbrasil, com matrícula brasileira PT-TCQ.
Entre setembro de 1981 e novembro de 1990, 186 Boeing 707 e 720 foram removidos para o AMARC, acrescidos por mais 102 células quase completas até 1993. No AMARC, esses aviões tiveram seus econômicos e potentes motores Pratt & Whitney JT-3D removidos, para reequipar os KC-135. 
Pátio do ferro velho da Southwest Alloys, um dos muitos instalados ao redor do AMARC
Uma vez despojados dos seus componentes mais úteis aos KC-135, os aviões tinham suas derivas removidas, para compensar o deslocamento do centro de gravidade pela remoção dos motores, e eram, finalmente, colocados à venda no mercado civil de sucata. Alguns desses antigos Boeing 707 ainda permanecem em poder dos militares.
B-52 esperando pela guilhotina
Em 31 de julho de 1991, os Estados Unidos e a União Soviética assinaram um acordo de redução de armas estratégicas, o SALT 1 (STrategic Arms Reduction Treaty), que incluiu a eliminação de 365 bombardeiros Boeing B-52. Como tal destruição deveria ser conferida por fotos de satélite pelos soviéticos, os aviões foram cortados por guilhotinas de 13 mil libras, erguidas por guindastes e cabos de aço, e depois por serras circulares elétricas, para melhor eficiência e possibilidade de reaproveitar peças de reposição. A maior parte desses B-52 cortados em pedaços ainda permanece em Davis-Monthan AFB. O número de peças de reposição disponibilizados no AMARC para os B-52 e para os KC-135 contribui, sem dúvida, para que a vida útil dessas aeronaves possa ser prorrogada até a década de 2040.
Super Guppy ex-NASA em Davis-Monthan, após o fim do Projeto Apollo
Durante os últimos anos, uma média de 4.500 aeronaves têm permanecido no AMARC, ao mesmo tempo. Se a unidade fosse uma força aérea independente, seria a segunda maior do mundo.

Em maio de 2009, o comando do AMARC foi transferido para  o 309th Maintenance Wing, e redenominado AMARG - 309th Aerospace Maintenance and Regeneration Group.

Existem quatro categorias de armazenamento para aviões dentro do AMARG:
  • Longo Prazo: As aeronaves são mantidas intactas e cuidadosamente preservadas para uso futuro;
  • Recuperação de Peças: As aeronaves são armazenadas para desmontagem, sendo utilizadas como fonte de peças de reposição;
  • Aeronaves em Stand-by de curto prazo: As aeronaves são mantidas intactos para estadias mais curtas do que as de longo prazo, para possível reutilização imediata;
  • Aeronaves excedentes do Departamento da Defesa: As aeronaves são vendidas inteiras ou em partes, para civis ou governos de nações amigas.
O AMARG emprega, atualmente, 550 pessoas, quase todas civis. Os 2.600 hectares (11 km2) das instalações estão adjacentes à Davis Monthan AFB . Para cada dólar que o governo gasta funcionamento da estrutura do AMARG, ele recupera ou produz 11 dólares pela recuperação, reutilização ou venda de aeronaves ou peças de reposição no mercado. O Congresso dos Estados Unidos determina quais são os equipamentos que podem ser vendidos, e para quais clientes.
Lockheed C-141 Starlifter, cortado para venda como sucata
Um avião removido para armazenamento sofre os seguintes tratamentos:
  • Todas as armas, cargas de cadeiras de ejecção e hardware (aviônicos) classificados como de uso restrito às Forças Armadas são removidos;
  • O sistema de combustível é protegido por esgotamento, reabastecendo-se com óleo leve, e depois esgota-se novamente. Isso deixa uma película de óleo protetor no interior do tanque;
  • A aeronave é selada e protegida da luz solar, poeira e temperaturas elevadas. Isto é feito utilizando uma variedade de materiais, que vão desde um composto de plástico de vinil em spray, chamado spraylat, fornecido pela Spraylat Corporation, de uma cor opaca branca e pulverizado sobre a aeronave, até simples lonas e sacos de lixo, de material plástico. A aeronave é, então, rebocada por um jipe ou trator até a sua posição de armazenamento.

    Destruição de um Grumman F-14, no AMARG
Recentemente, o AMARG esteve envolvido na destruição sumária e total das aeronaves Grumman F-14 Tomcat. Apreensivos com a possível venda de componentes dessas aeronaves à Força Aérea do Irã, no mercado negro, que ainda utiliza o tipo, o Departamento da Defesa ordenou a total destruição desses aviões, retirados de serviço pela marinha americana, sem oferecer sequer um componente intacto para o mercado civil. Até mesmo alguns F-14 cedidos para museus foram confiscados e destruídos.
Fim de um F-14, no AMARG
O acesso ao AMARG é, obviamente, restrito a empregados civis e militares das forças armadas, ou a pessoas por eles autorizadas. Entretanto, a sua visitação é possível, a bordo de ônibus operados pelo vizinho Pima Air & Space Museum, exceto nos finais de semana. Não é permitido descer do ônibus durante o passeio. O Pima Museum também oferece um passeio ao Titan Missile Museum, um silo de míssil ICBM, com um míssil desarmado Titan II ainda em seu interior,  Um passeio no Pima Air & Space Museum, então, é um programa realmente imperdível para o turista que visita o Arizona.

10 comentários:

  1. Caro professor Xará,

    Sou apaixonado por aviação, sobretudo aviação civil e quero desejar os parabéns pelo seu Blog. Visito-o diariamente e já li quase todos os posts, desde o primeiro sobre os Super Constelation da Varig até este último. Espero que continue postando artigos tão ricos.

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  2. Chega dar uma dor no coração ver a destruição dos F-14s. Ótimo texto!

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  3. Existem instalações semelhantes em paises como Russia, China, Inglaterra, Israel, França ou Brasil? como esses paises lidam com as aeronaves desmobilizadas?

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    1. Nada igual a isso existe em nenhuma parte do mundo. A mania de criar enormes cemitérios de material, quer seja aeronáutico, ferroviário, naval ou espacial, parece ser uma característica dos americanos. Outros países possuem seus cemitérios de aeronaves também, mas em escala muito reduzida e dispersa em vários aeródromos. As aeronaves desmobilizadas costumam ser vendidas tão logo sejam retiradas de serviço e desmontadas, para não ocupar espaço útil.

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    2. Gostaria de compartilhar uma memória afetiva da minha primeira infância: sou de 1972, portanto tenho hoje 42 anos. Nasci na Base Aérea de Cumbica (BASP), pois meu pai era sargento da FAB e morávamos na vila militar dentro da base; recordo-me que nos anos 70, antes da construção do aeroporto internacional de Guarulhos (GRU), toda a área que hoje é o aeroporto era uma imensa mata que pertencia à aeronáutica, mata essa que cobria a maior parte do município de Guarulhos, e se fundia com as matas da serra da Cantareira (havia uma biodiversidade imensa, inclusive onças, e quando do início da construção do aeroporto em 1980 houve uma das maiores hecatombes ecológicas deste pais... os animais selvagens buscavam refúgio na vila... o que teve de gambá morto pelos cães domésticos não foi brincadeira...), bom, a parte as tristes lembranças de tratores imensos derrubando a floresta, lembro-me que nessa referida mata havia pequenas estradas de terra de serviço que a atravessavam, e às vezes aos domingos meu pai pegava o seu jipe e me levava pra passear por aquelas estradas, e uma lembrança que me marcou muito era que no meio desta área militar havia uma clareira com restos picotados de aviões antigos, lembro-me de relíquias da II guerra mundial como B-25 e C-47 picotados, fuselagens sem asas, trens de pouso, etc...
      Até hoje não sei se aquele depósito de sucata aeronáutica escondido no mato era um simples lixão comum ou desvio de valioso duralumínio perpetrado por brigadeiros em plena época da ditadura, onde desviava-se muito mais dinheiro público que agora, e não havia imprensa livre pra investigar...

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  4. Meu coração partiu ao ver o F-14 sendo destruido, não sabia q todos os exemplares de tal aeronave (a que mais gosto dos eua)foram confiscados e destruidos...uma pena!

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    1. Compartilho da tua opinião. Os F-14 também eram os meus caças americanos a jato favoritos. Mas alguns ainda sobreviveram, e o mais facilmente acessível é o exemplar que está no Museu do Intrepid, em New York. Aliás, esse é um museu imperdível, já possui Blackbird, Concorde, F-14 e um protótipo do Ônibus Espacial, o Enterprise, fora o próprio navio que é show.

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  5. olá, sou estudante do curso de ciências aeronáuticas da PUC Go, e estou terminando minha monografia sobre logistica reversa na aviação. Você poderia me dizer onde você pesquisou essas informações?

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    1. A maior parte das informações foram pesquisadas nos livros: 50 Years of the Desert Boneyard: Davis Monthan A.F.B., Arizona, de Phillip D. Chimery, e no livro Desert Airliners, de Grahan Robson. O resto veio de outras revistas e de sites na Internet.

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  6. Caríssimos! Este Blog, de fato, merece toda nossa atenção. 1.000.000 de visitas já diz tudo. Embora não seja esse o objetivo do site, acredito ser útil fizer que há cerca de uns 2 anos visitei o museu da TAM, anexo ao Aeroporto de São Carlos, e fiquei igualmente impressionado. Tem de tudo por lá. Um forte abraço aos idealizadores desse site. Walter L.A.

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