A falsificação é um dos crimes mais disseminados no mundo, e movimenta um mercado de bilhões de dólares ao redor do globo. Longe de ser um simples problema econômico, a falsificação hoje é uma das ameaças mais prementes à segurança do transporte aéreo.
Aeronave americana em manutenção na China: controle difícil dos componentes instalados |
Antes de lançar no mercado um novo modelo de aeronave, seu fabricante pode submetê-la a um processo de certificação perante as autoridades aeronáuticas. As autoridades aeronáuticas, por sua vez, deve submeter essa aeronave a extensos e rigorosos testes que irão comprovar sua segurança. Concluídos tais testes, a autoridade concede ao novo modelo de aeronave um Certificado de Aeronavegabilidade - CA, o que autoriza a exploração econômica dessa aeronave. Embora seja permitido operar uma aeronave sem o Certificado de Aeronavegabilidade, como experimental, o CA é exigido para todos os casos nos quais a aeronave irá prestar serviços remunerados, com a exceção, no Brasil, da instrução de voo de aeronaves ultraleves.
A certificação é um processo bastante complexo, e não atinge apenas a aeronave. Atinge também seus componentes, seu processo de fabricação, seu projeto original, suas modificações e sua documentação. O CA não é um documento eterno, pois tem um prazo de validade predeterminado, 6 anos, no caso do Brasil, devendo ser renovado ao final desse prazo por oficinas também devidamente certificadas para isso.
Os tristes restos do Boeing 737 da Vasp, PP-SMG, irão alimentar um crescente mercado paralelo de componentes |
O problema é que, uma vez colocada em serviço, a aeronave irá passar por inúmeros procedimentos de manutenção, cuja finalidade é manter a aeronave em condições de uso como se nova estivesse. Tais procedimentos exigem substituição de componentes desgastados, danificados ou cuja vida útil certificada tenha se esgotado. Obviamente, os componentes de reposição devem ser certificados e de origem comprovada e documentada, capazes de serem rastreados desde a sua origem até a instalação na aeronave.
Assegurar que as peças instaladas durante a manutenção das aeronaves sejam realmente certificadas e aprovadas para uso, no entanto, está longe de ser um processo fácil. Peças de aeronaves são componentes caros, e isso atrai um crescente número de falsificadores, ávidos de lucro fácil.
Praticamente tudo pode ser falsificado, e quanto mais caro o produto, mais atraente e lucrativa se torna a sua falsificação. Mas, no caso de peças de aeronaves, o uso de peças falsificadas, ou simplesmente não aprovadas para uso, nao é um simples problema de ordem econômica, mas sim de segurança operacional, pois não existe nenhuma garantia de que o componente falsificado tenha a mesma qualidade de fabricação, durabilidade, resistência e confiabilidade de um componente submetido ao rigoroso processo de certificação. Tal componente, potencialmente, pode até mesmo derrubar um avião.
Embora o B-52 seja uma aeronave militar, possui muitos componentes em comum com várias aeronaves da Boeing |
Tecnicamente, não existe grande dificuldade em se falsificar um componente aeronáutico. Qualquer torneiro mecânico consegue copiar uma peça a partir de uma original, usando material ordinário e de qualidade inferior. Também é perfeitamente viável recuperar (ao menos na aparência) um componente usado, cuja vida útil certificada tenha se esgotado.
Restos de aeronaves da VASP em leilão: valem mais do que pesam, devido à possibilidade de se vender peças no mercado negro |
Então, uma peça não aprovada (unapproved part) é uma peça ou material destinado à instalação em uma aeronave ou produto aeronáutico certificado, que não foi nem fabricado (ou recuperado) de acordo com procedimentos aprovados, nem está de acordo com um projeto de tipo aprovado, ou que não obedeçam a padrões técnicos aceitáveis e devidamente certificados pela autoridade aeronáutica. Na aviação, os componentes não aprovados são designados, informalmente, como bogus parts.
Peças não aprovadas para uso aeronáutico podem ter várias origens:
- Componentes usados recuperados sem autorização do fabricante ou da autoridade aeronáutica;
- Componentes de uso automotivo, doméstico ou industrial modificados, marcados, documentados ou simplesmente comercializados como componentes aeronáuticos;
- Componentes oferecidos no mercado pelos subcontratantes de um fornecedor original, sem o seu conhecimento e autorização;
- Componentes que não tenham sido mantidos, reparados ou revisados de acordo com os requisitos técnicos de aeronavegabilidade, ou que tenham sido reparados ou revisados por pessoal não autorizado a efetuar esses serviços.
- Componentes simplesmente falsificados, fabricados por pessoas que não sejam os fornecedores certificados ou seus subcontratados, mas marcados, embalados, documentados e comercializados como se assim o fossem;
Em vários casos, há conivência da oficina de manutenção na instalação de componentes não aprovados. Muitos operadores de aeronaves compram os componentes de fontes confiáveis, mas, ao não fiscalizar sua instalação, as oficinas instalam componentes "vencidos" ou falsificados, e depois comercializam as peças originais, fornecidas pelo cliente, "por fora". Depois de instalados na aeronave ou conjunto, é muito difícil reconhecer o problema, podendo resultar até graves acidentes.
Existe, também casos de má fé do operador das aeronaves, que, querendo reduzir seus custos operacionais, autorizam a instalação de componentes não aprovados.
O aproveitamento de peças usadas e cuja recuperação e uso não sejam legalmente permitidos é uma permanente fonte de problemas. As fontes desse material são muitas:
- Desmonte de aeronaves ou conjuntos fora de serviço, ou acidentados: embora tal prática não seja essencialmente proibida, as peças recuperadas devem passar por uma rigorosa inspeção e reparos, caso isso seja permitido pelo fabricante, ou pelas autoridades. Mas muitas peças são simplesmente removidas de uma sucata ou destroço e colocadas em serviço, sem reparo, sem laudo técnico, sem registro e sem documentação;
- Uso de material militar excedente, vendido no mercado civil: as forças militares de muitos países costumam desativar aeronaves obsoletas e comercializá-las inteiras ou desmontadas para sucateiros. O problema é que muitas aeronaves, conjuntos e peças têm similares em uso civil, mas os militares seguem suas próprias regras de manutenção e uso de aeronaves, a maior parte das quais totalmente incompatível com o uso civil, portanto fora das regras de certificação. Peças militares, mesmo assim, infestam o mercado civil como uma verdadeira praga;
- Peças rejeitadas no controle de qualidade dos fornecedores ou subcontratantes certificados, mas desviadas e vendidas em um mercado paralelo. Deveriam ser sumariamente destruídas;
- Saques de destroços de aeronaves acidentadas;
- Reaproveitamento de peças removidas pelas oficinas de manutenção, que deveriam descartar tal material, mas que, em alguns casos, vendem, recuperam ou fazem, ilegalmente, uma "restauração cosméstica" nas mesmas, abastecendo um perigoso mercado de componentes não aprovados.
Com a crescente perseguição policial e uma perigosa concorrência, muitos criminosos estão deixando para trás atividades como o tráfico de drogas e entrando no mercado de peças aeronáuticas falsificadas. Isso afligiu, e ainda aflige, principalmente, os norte-americanos, mas a eficiência das autoridades policiais dos Estados Unidos está provocando uma emigração dos criminosos para países economicamente emergentes, como o Brasil. Então, todo cuidado é pouco.
Ainda assim, os maiores fornecedores mundias de peças aeronáuticas não aprovadas estão no sul dos Estados Unidos, particulamente nos Estados da Flórida, Texas, Arizona e Califórnia. A China e alguns países do Sudeste Asiático são os maiores produtores de componentes falsificados desde a sua origem.
Em 2004, Enzo Fregonese, então com 75 anos de idade, antigo dono da Panaviation,
uma empresa que fornecia peças de reposição de aeronaves, localizada em Roma,
Itália, foi condenado, em 26 de fevereiro, pelo Tribunal Distrital de
Tempio Pausania, na Sardenha, a uma pena de 15 meses de prisão. O crime foi distribuir peças de aeronaves não aprovadas em toda
a indústria da aviação.
A decisão final saiu após uma investigação criminal de três anos, denominada
"Operação América Phoenix", que foi conduzido pelo procurador da
República italiano e uma unidade especial da polícia financeira italiana
(Guardia di Finanzia).
A investigação revelou que, via Panaviation e vários comerciantes de peças de aeronaves, peças altamente questionáveis foram distribuídas
em todo o mundo. Esta foi a primeira sentença penal aplicada em um caso de peças não aprovadas na aviação europeia.
Entre os clientes da Panaviation, estavam fabricantes como a Airbus e operadores como a Swissair, Lufhansa, Air France, Northwest, Crossair e Alitalia, entre muitos outros. Por essa relação, pode-se entender a gravidade do problema.
Nem mesmo a NASA ficou isenta de usar peças falsificadas. Em março de 2009, Christopher Scolese, então administrador em exercício da agência, foi obrigado, em uma subcomissão do Congresso Americano, a admitir que peças falsificadas foram instaladas em uma nave espacial, a Kepler, cuja função era encontrar planetas semelhantes á Terra em outros sistemas solares. A descoberta desses componentes atrasou o lançamento da nave em 9 meses, com inacreditáveis prejuízos ao orçamento da NASA.
Olá Jonas,
ResponderExcluirinteressante esse post mesmo, o mercado automotivo sofre desse mesmo problema, já comprei "bogus parts" para meu carro, que por coincidência era um rolamento SKF, além de uma embreagem LUK (isso que eu soube...)
Imagine então o mercado de remédios, alimentos, bebidas....
Grande Abraço
Lucas, comigo já aconteceu pior, pois já usei prótese cirúrgica falsificada, feita de sucata aeronáutica de titânio sinterizado. Imagine bogus parts no próprio corpo? Tive que fazer uma segunda cirurgia para trocar a prótese, de altíssimo risco, pois a mesma estava na coluna vertebral. Ou eu ficava paralítico ou morria... felizmente estou inteiro hoje, com uma approved part... Obrigado pela visita.
ResponderExcluirJonas, excelente POST. Só uma coisa, uma aeronave experimental opera sim com um CA, mas é um CA especial. No Brasil esse CA especial é chamado de CAVE e nos EUA é chamado de Experimental Certificate. (requisito 21.175 do RBCA 21).
ResponderExcluirParabéns pelo blog.
Ah, sim, Cesar, obrigado por lembrar... eu esqueci de citar esse detalhe, mas o CAVE é um Certificado de Autorização de Voo Experimental, não propriamente um Certificado de Aeronavegabilidade. Valeu pela lembrança e volte sempre, sempre tem artigos interessantes.
ResponderExcluirMuito bom! "Bugs part" em bicicletarias está cheio, vem do paraguai, 1/3 do preço de compra , mas são vendidas como originais e são identicas, pior que ciclista não presta muita atenção e não tem controle de desgaste.. lucro para o mercado negro...
ResponderExcluirBoa noite, certa vez li na revista Flap Internacional que um 737 que caiu na Europa tinha peças na turbina pertencentes ao famoso avião 737-200 do Garcez que foram tiradas, enterradas e posteriormente vendidas no mercado negro. Abraços, muito instrutivos seus posts...parabéns....
ResponderExcluirBoa noite JONAS LIASCH
ResponderExcluirSou aluno do curso de manutenção de aeronaves do POLIMIG MG – BH gostaria muito de fazer uma parceria com seu blog, e divulga-lo em meu blog; este trata também de assuntos sobre aviação, e quero parabenizar pela postagem e pelo blog que são ótimos "Padrão Aeronáutico"
É claro convida-lo para dar uma olhada em nosso blog
http://manutencaodeaeronaves2011-2013.blogspot.com.br/
Às vezes copio algumas postagens de vocês e coloco lá...
Claro cito a fonte e a autoria como foi pedido no tópico “Autoria dos Textos”
E esta, é uma das postagens que acho interessante os alunos da minha turma ler.
Desde já grato
Carlos Henrique Peroni Junior
Bom assunto, mas o que cria os falsificadores são os autos preços daqueles que detêm a patente. Por causa dos autos preços, o que elevaria o lucro acabam perdendo uma fatia dele para quem copia e isso traz prejuízo, em caso de acidente, para muitos.
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