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terça-feira, 26 de abril de 2016

A restauração dos últimos Boeing B-29: histórias de sucesso e fracasso

Essa é a história dos três últimos Boeing B-29 que ainda voam, ou que foram potencialmente capazes de voltar a voar novamente. São três aeronaves, três histórias diferentes, e nem sempre o final é feliz. Os Boeing 29 foram os mais avançados bombardeiros da Segunda Guerra Mundial, e fizeram parte da história ao lançar as duas bombas atômicas sobre o Japão, em agosto de 1945. Ao todo, foram fabricados 3970 B-29, de todos os modelos, entre 1943 e 1946.
O Boeing B-29 FIFI (foto de Bill Crump)
Nenhuma dessas três aeronaves cumpriu grandes missões históricas. Os veteranos aviões "Enola Gay" e "Bock's Car", que lançaram as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, colocando um fim na Segunda Guerra Mundial, estão intactos, restaurados e guardados em Museus, mas jamais deverão voar novamente. Cerca de 20 aeronaves foram preservadas, nem todas intactas, nos Estados Unidos e duas no exterior, uma na Grã Bretanha e outra na Coreia do Sul. Entre todos eles, somente dois estão aeronavegáveis, voando frequentemente nas diversas feiras de aviação nos Estados Unidos.
Um B-29 na época da Segunda Guerra Mundial
O último B-29 saiu da fábrica em 1946, e os poucos remanescentes tiveram sua carreira militar encerrada definitivamente em 1960.

O "FIFI"
O B-29 FIFI, da Commemorative Air Force, em voo

O B-29 da CAF - Commemorative Air Force, antes chamada de Confederated Air Force, apelidado de "Fifi", é, atualmente, um dos dois únicos B-29 em condição de voo do mundo. Construído na fábrica da Boeing em Renton, Washington, foi entregue à USAAF - United States Army Air Force,  em 31 de julho de 1945 e chegou tarde demais para entrar em combate na Segunda Guerra Mundial. Foi modificado para o padrão TB-29A, de treinamento e reboque de alvos, mas foi usada como uma aeronave administrativa até ser considerada excedente e armazenada em Davis-Montham AFB, em Tucson, Arizona, pouco tempo depois.
O FIFI em Long Beach, em 2010, com novos motores

O B-29 retornou à ativa em 1953, e serviu à USAAF (USAF - United States Air Force, a partir de 1947) até a sua desativação definitiva, em 1958. A USAF enviou a aeronave, junto à 35 outras do mesmo tipo, para uma área remotada da China Lake Naval Air Weapons Station, uma instalação da Marinha Americana (US Navy), no Deserto de Mojave, para servir como eventual alvo no solo para aeronaves de combate em treinamento. Parecia que seu destino era a total destruição.

De fato, 12 anos depois, a maioria dos 36 aviões já tinha sido totalmente destruída, restando ainda uns cinco mais ou menos inteiros, mas danificados pelo tempo e vandalizados. Foi quando um piloto da então Confederated Air Force, uma entidade civil dedicada a preservar aeronaves militares antigas, avistou, no início de 1971, um grupo de aviões perto de China Lake, constatando-se que eram raros Boeing B-29, aparentemente inteiros.

A CAF procurou a USAF, para tentar adquirir uma dessas aeronaves. O processo de aquisição foi complicado e altamente burocrático, pois a USAF era dona dos aviões, mas tinha cedido os mesmos à Marinha, que deveria autorizar a transação. Finalmente, em 23 de março de 1971, a CAF tornou-se proprietária do B-29 USAF 44-620070, obtendo o registro civil do avião como N4249. Essa célula era a que estava em melhores condições de restauração entre os B-29 sobreviventes de China Lake.
O interior do nariz do FIFI, do posto do bombardeador

A CAF deslocou a China Lake uma equipe de mecânicos, pilotos e entusiastas, todos voluntários, para tentar recolocar a aeronave em voo. Canibalizando as outras células, conseguiram peças de reposição, e um intenso trabalho de substituição de combustível, óleo, fluido hidráulico, mangueiras, fiação e componentes elétricos tomou conta do local, sob sol e calor intenso, mas o trabalho compensou.

Os motores funcionaram surpreendentemente bem, apesar da má fama e dos anos parados no deserto, e após várias experiências no solo, foram considerados confiáveis o suficiente para o voo.

A FAA- Federal Aviation Administration autorizou um único voo de translado, saindo de China Lake, até a então sede da CAF em Harlingen, Texas, distante 1.250 milhas (2011 Km). Após esse voo, a aeronave seria retida no solo até que extensos programas de revisão exigidos pela FAA e a própria CAF fossem cumpridos.

No dia 3 de agosto de 1971, o N4249 decolou de China Lake, às 07:48h, para um voo sem escalas até o Texas, que durou seis horas e 38 minutos, sem incidentes. Foi o primeiro voo de um B-29 registrado em mais de 10 anos, um feito realmente memorável.

A restauração de um grande e complexo avião quadrimotor, pressurizado, exigiu nada menos que três anos de trabalho, cujo custo foi coberto com angariações entre membros da instituição, de empresários e da população em geral.

No final do ano de 1974, o B-29, batizado de "Fifi", foi considerado aeronavegável pela CAF e pela FAA, e foi autorizado a voar em eventos aeronáuticos nos Estados Unidos e no Canadá. Virou a grande estrela da CAF, e voaria junto com as várias aeronaves históricas da instituição.

Ao longo dos anos seguintes, o "Fifi", além das apresentações aéreas, ainda virou estrela de diversos filmes, como "Enola Gay: os homens, a missão e a bomba atômica" (1980), Roswell (1993), e Os Eleitos (1983). Em agosto de 1981, o avião recebeu nova matrícula na FAA, N529B.
Cockpit do FIFI, modernizado, mas ainda mantendo muitos elementos originais

Entretanto, os problemáticos motores Wright Cyclone R3350-57AM, da safra da Segunda Guerra, deram muita dor de cabeça aos pilotos e mecânicos, e, após um episódio de parada de um dos motores durante um show aéreo, em 2006, a CAF resolveu tomar a difícil decisão de reter o avião no solo até que motores mais confiáveis fossem instalados.

Em 21 de janeiro de 2008, A CAF e o Cavanaugh Air Museum anunciaram na imprensa que nada menos que 1,2 milhões de dólares estariam disponíveis para remotorizar o "Fifi".
FIFI no Arizona

O trabalho de remotorização foi intenso, caro e trabalhoso, e consistiu em instalar motores do mesmo tipo, mas mais modernos, utilizados em aeronaves como os Douglas A-1 Skyrider e Fairchild C-119 "Vagão Voador". Os motores foram reconstruídos combinando-se peças de motores R3350-95W e R3350-26WD, e viraram uma espécie de motores "Frankenstein", mas funcionaram bem e se revelaram bem mais confiáveis que os motores antigos do tempo da guerra.

Em 5 de agosto de 2010, após quatro anos parado, o B-29 "Fifi" voltou a voar em exibições nas feiras aéreas, e foi baseado, de 2010 a 2013, em Addison, Texas, sede do Cavanaugh Flight Museum, cujo proprietário é Jim Cavanaugh, o maior financiador da segunda grande restauração do avião. Em 2013, o avião passou a ficar baseado no Vintage Flying Museum, no Aeroporto Internacional de Meachan, em Forth Worth, Texas. Atualmente, é uma das grandes estrelas dos shows aéreos na América do Norte.

O "DOC"
O B-29 "Doc" acionando os motores

A história do B-29 "Doc" tem em comum com a história do "Fifi" por um detalhe: também foi resgatado de China Lake. Entretanto, o trabalho, a logística e o custo de trazer "Doc" à condição de aeronavegabilidade foi muito maior, e a aeronave, apesar de estar praticamente pronta, até abril de 2016 ainda não tinha voado.
O Doc, ao ser resgatado de China Lake, em 1998

O B-29 USAAF 44-69972  foi fabricado em Wichita, Kansas, e entregue à Força Aérea no dia 23 de março de 1945. Jamais foi enviado para a linha de batalha, e ficou nos Estados Unidos. Em outubro de 1950 foi desativado e armazenado em Pyote AFB, no Texas, mas ficou pouco tempo parado, pois em dezembro do mesmo ano voltou a voar e foi enviado para San Antonio, Texas, onde foi convertido para o padrão TB-29A.

Foi usado por vários anos como aeronave de calibração de radar, e serviu na Guerra da Coréia, até ser retirado de serviço em 1956. Assim como vários outros B-29 da USAF, foi cedido para a Marinha e seguiu para a base de China Lake, onde seria usado como aeronave-alvo para treinamento de ataques aéreos. Milagrosamente, escapou intacto de quatro ataques de mísseis dirigidos a ele, e durante as décadas que ficou no deserto, foi atingido por um único tiro, estando portanto em relativo bom estado quando foi localizado por Tony Mazzolini, do United States Aviation Museum, em 1987.
O Doc em China Lake, relativamente intacto, a despeito das décadas de abandono

O avião escapou da grande destruição dos B-29 de China Lake promovido pela Marinha, por estar num local mais distante dos outros, num canto esquecido da área da base, no meio do deserto. O fato de estar abandonada, servindo de abrigo dos pássaros do deserto, não significava que a Marinha estava disposta a vender a aeronave. Mas Mazzolini era persistente, e teimou durante longos 12 anos para conseguir por as mãos no avião.
Situação do Doc, em 1998

Mazzolini viu que não conseguiria comprar o avião, e propôs à Marinha uma permuta, por uma aeronave North American B-25 restaurada e em condição de voo, para um Museu Naval na Flórida. A Marinha aceitou, e Mazzolini comprou um velho 25 na Venezuela, embarcou o avião para Cleveland, Ohio, restaurou a aeronave por sua conta, nas especificações da Marinha, e fez a permuta, em 1998, conseguindo o seu B-29. Foi um trabalho de persistência notável, já que só a restauração do B-25, uma aeronave muito menor, levou seis anos para ser concluída.
O Doc em seus últimos dias em China Lake

Inicialmente, a ideia era tirar o avião do deserto em China Lake, e levá-lo para o vizinho aeroporto de Inyokern, e aí restaura-lo para a condição de voo. Entretanto, uma avaliação das condições da célula constatou que os 42 anos que o B-29 permaneceu no deserto deixou sérios danos, especialmente forte corrosão no revestimento e na longarina inferior das asas. Seria preciso uma instalação melhor e um pessoal muito especializado para fazer uma restauração ao nível de aeronavegabilidade.
Mazzolini e o seu avião, comprado depois de uma luta de 12 anos

De qualquer forma, Mazzolini e um grupo de voluntário foi a China Lake retirar o avião e levá-lo para Inyokern. A aeronave estava bastante atolada na areia e deu muito trabalho para sair do lugar. O avião permaneceu em Inyokern durante dois anos, e as avaliações feitas por especialistas da Boeing comprovou a necessidade de levar o avião para Wichita, na mesma fábrica da Boeing onde a aeronave foi construída, em 1945.
O Doc sendo transportado, em partes, para Wichita

Em maio de 2000, o avião foi parcialmente desmontado e transportado em carretas abertas até o Kansas. A Boeing cedeu um hangar, quase no mesmo local da linha de montagem de onde o B-29 tinha saído 55 anos antes. Através de doações voluntárias, e serviço voluntário de mecânicos da própria Boeing, o processo de restauração teve início, mas andou lentamente, especialmente por falta de verbas. Em março de 2007, a aeronave deixou as instalações da Boeing e foi rebocada para o Kansas Aviation Museum, também em Wichita.
Cauda do Doc, em trabalho de restauração

A restauração prosseguiu num terrivelmente ritmo lento, por falta de dinheiro, e parecia que o sonho de trazer o "Doc" de volta aos ares estava perto de tornar-se uma utopia. Finalmente, em fevereiro de 2013, uma sociedade sem fins lucrativos, a Doc's Friends foi constituída e adquiriu a aeronave, graças ao esforço de empresários e entusiastas de Wichita, liderados por Jeff Turner, presidente aposentado da Spirit AeroSystems. A aeronave foi registrada na FAA - Federal Aviation Administration como N69972.
Roll-out do Doc, em 23 de março de 2015


A equipe celebra o primeiro acionamento dos motores do Doc, em setembro de 2015
A partir da aquisição pela Doc's Friends, a restauração acelerou-se. Em junho de 2014, os motores e hélices, já totalmente revisados, foram instalados na aeronave, e previu-se que o primeiro voo aconteceria antes do final do ano. Depois de alguns atrasos, o roll-out  do "Doc" ocorreu dia 23 de março de 2015, e os motores foram colocados em funcionamento, pela primeira vez, em 18 de setembro de 2015, e vários testes do grupos motopropulsores foram realizados. O primeiro voo foi previsto para a primavera de 2016, mas acabou ocorrendo apenas na manhã do domingo, dia 17 de julho, na pista da Base Aérea de McConnell, em Wichita, Kansas. .
Pouco antes da aeronave decolar, no entanto, as portas de bombas estavam emperradas e não fechavam. A aeronave taxiou de volta, e em 15 minutos alguns veteranos, que ajudaram a restaurar o avião, travaram as portas no lugar manualmente. O voo, de sete minutos e com trens de pouso embaixo, foi bem sucedido, e agora, oficialmente, o mundo tem dois Boeing B-29 voando.
Primeiro voo do Doc em 60 anos
Mais antigo que o Fifi, o Doc ficou sem voar por nada menos que 60 anos, entre 1956 e 2016. Agora, está de volta aos ares.

 O "KEE BIRD"
O B-29 "Kee Bird" pouco antes de decolar para a sua última missão

 A história do "Kee Bird" é muito interessante, ainda que não tivesse um final feliz. O B-29DC-95 AAF 45-21768, foi um dos últimos aviões B-29 fabricados, quando a Segunda Guerra Mundial já tinha acabado entre agosto e setembro de 1945.
O Kee Bird em missão militar, no Ártico, em 1946
A aeronave foi entregue à AAF em Grand Island Army Airfield, em Nebraska, mas nunca foi  alocado a qualquer unidade da AAF nessa base, até o início de 1946, quando o Reconnaisansse 46 Squadron - RS46 foi formado.
O Kee Bird voando em formação, no Ártico
O objetivo dessa unidade, cuja base ficava em Ladd Field, perto de Fairbanks, no Alaska, era o reconhecimento estratégico. A missão do grupo era fazer reconhecimento fotográfico na região ártica da União Soviética, mas sem invadir o espaço aéreo do país, uma vez que isso poderia ter sérios resultados, como o abatimento da aeronave. Os aviões também eram equipados com sistemas de ELINT (Inteligência Eletrônica).  Embora o Kee Bird fosse redesignado como aeronave de reconhecimento F-13, manteve as armas defensivas e os visores e equipamentos de lançamento de bombas.
O Kee Bird após o pouso de emergência, visto de um avião de resgate, em 1947

O RS46 também participou do Projeto Nanook, cujo objetivo era pesquisar a viabilidade de atacar a União Soviética pelas rotas de Círculo Máximo, no Ártico. Obviamente, todas as missões do RS46 eram altamente secretas.

O RS46 foi ativado em junho de 1946, e iniciou as suas missões já no final desse mês, aproveitando o curto verão ártico. O Kee Bird fazia parte do grupo de 19 aeronaves B-29 da Unidade.

No dia 20 de fevereiro de 1947, o Kee Bird recebeu ordens para executar uma missão muito comum: navegar até o Polo Norte  Geográfico, e retornar para Ladd Field, missão que deveria durar entre 12 a 20 horas, sob silêncio de rádio e sem cobertura radar. O Kee Bird tinha combustível suficiente para ficar no ar por 26 horas em condições normais, já que tinha tanques extras, inclusive dentro do compartimento de bombas. 11 tripulantes foram designados para a missão, a sétima do Kee Bird, e a decolagem ocorreu às 10 horas, hora local de Ladd Field.

A aeronave sobrevoou o Polo Norte, mas se perdeu no retorno. As dificuldades de navegação no Ártico são muitas, pois, a partir do Polo Norte, todas as direções são Sul. A navegação daquela época utilizava sextantes, e, em fevereiro, o Sol ficava muito baixo, sendo quase impossível avaliar seu ângulo em relação à linha do horizonte, e, especialmente deve-se levar em consideração que todos os meridianos ficam muito próximos um do outro, se encontrando no Polo. Bússolas magnéticas também são quase inúteis no Ártico, pela grande proximidade com o Polo Norte Magnético. O avião estava voando acima da Latitude 85ºN quando se perdeu, o que tornou os erros enormes.
O Kee Bird em maio de 1995, intacto e pronto para o acionamento

O piloto do Kee Bird rompeu o silêncio de rádio, já no dia 21 de fevereiro, e chamou Ladd Field, e comunicou os problemas de navegação. Logo comunicou que estavam enfrentando uma tempestade que alcançava 24 mil de altura, e que estavam sobrevoando terra, mas sem ter ideia de que local era. Isso piorou a situação da navegação. Era evidente a situação de emergência, e os procedimentos de busca foram iniciados, julgando-se que a aeronave provavelmente estava em algum lugar da costa ártica do Alaska.

Finalmente, a tripulação comunicou que restavam apenas quatro minutos de combustível, e que ia pousar em terra ou no gelo, no melhor lugar que pudessem. O pouso foi bem sucedido, sobre um lago congelado coberto de neve compactada, com leves danos para o avião e sem machucar ninguém da tripulação.
Após taxiar, um incêndio começa e se alastrar

A tripulação fez um debriefing, depois do pouso, e chegaram à conclusão que estavam muito fora da rota. Checando a posição no solo com o auxílio dos equipamentos de navegação, viram que tinham pousado na Groenlândia, a 80ºN e 061ºW, aproximadamente, 280 milhas ao norte de Thule, onde havia instalações militares americanas. A posição do avião, passada via rádio, foi recebida por uma aeronave civil e transmitida para Ladd Field, que estava longe demais, no entanto.

Uma missão de resgate, via Thule, foi organizada, a aeronave foi avistada e logo a tripulação foi resgatada por uma aeronave Douglas C-54 Skymaster que pousou no lago congelado. O avião decolou do local utilizando foguetes auxiliares, escalou em Thule e depois levou os sobreviventes para Westover Field, Massachussets, onde pousou na tarde de 24 de fevereiro. Fora algumas poucas queimaduras de frio, todos os tripulantes estavam bem.

O Kee Bird foi dado como aeronave perdida em acidente, irrecuperável e baixada definitivamente do inventário da USAAF. Os equipamentos secretos e todos os documentos da missão foram destruídos no local do acidente pela própria tripulação, mas a aeronave em si foi abandonada praticamente intacta. Pelos 47 anos seguintes, ficou congelada no remoto lago da Groenlândia, preservada.
Nos anos 90, um piloto e aventureiro americano, Darryl George Greenamyer, cuja carreira na aviação incluiu voar Lockheed SR-71 Blackbird na Lockheed Skunk Works, além de Mustangs e Bearcats nas corridas aéreas de Reno, Nevada. Chegou até a reconstruir, a partir de destroços e peças de reposição, um Lockheed F-104 Starfighter e a fazer alguns recordes com ele. Greenamyer resolveu fundar uma empresa cujo objetivo era resgatar e voar o velho e congelado Kee Bird, a Kee Bird Limited Liability Co.
Em julho de 1994, Greenamyer, então com 58 anos de idade, reuniu uma equipe e voou para o local de pouso do Kee Bird, na Groenlândia. Utilizou uma aeronave de carga canadense De Havilland Caribou, fabricada em 1962, usando o aeroporto militar de Thule como base de operações. O velho avião foi encontrado em muito boas condições, a ponto de Greenamyer achar que poderia tirar a aeronave de lá voando e levá-la a Thule, para maiores reparos, antes do fim do curto verão ártico.
Usando o velho Caribou, a equipe de Greenamyer levou quatro motores e quatro hélices remanufaturadas, para substituir os grupos motopropulsores originais, danificados no pouso de emergência em 1947. As superfícies de comando, destruídas pelo longo tempo de abandono, foram substituídas, assim como os pneus, e os engenheiros, capitaneados por Rick Kriege, logo colocaram as partes elétricas, comandos de voo, sistemas hidráulicos em ordem o suficiente para tentar um voo até Thule, um voo que levaria pouco mais de uma hora.

Infelizmente, o engenheiro chefe Rick Kriege adoeceu no local e teve que ser removido para um hospital na remota cidade de Iqaluit, no Canadá, onde acabou falecendo devido a um coágulo sanguíneo, duas semanas depois.
O velho trator de esteiras foi abandonado por Greenamyer e foi reencontrado em 2014
Embora o avião estivesse praticamente pronto para voar, o tempo piorou, as neves de inverno começaram a cair e a equipe de Greenamyer foi obrigada a abandonar o local até o início do próximo verão.

Em 21 de maio de 1995, Greenamyer retornou ao local, testou os motores e os sistemas básicos do avião, e taxiou o avião com seus próprios motores. Por um momento, pareceu apto a voar para Thule, depois de ficar 48 anos congelado. Mas, o destino reservado ao avião era outro: um tanque de combustível improvisado, que alimentava a APU - Auxiliary Power Unit, vazou e pegou fogo, na fuselagem traseira do avião. Os tripulantes abandonaram a aeronave a tempo, e somente o cozinheiro e mecânico Bob Vanderveen, que estava na seção traseira acompanhando o funcionamento dos motores, sofreu alguns ferimentos por inalação de fumaça e queimaduras superficiais. 
Os tristes restos do Kee Bird, em 2014, abandonados na Groenlândia

O fogo não pode ser contido do lado de fora, apesar de todos os esforços da equipe. em parte devido à falta de equipamento adequado de combate ao fogo. O pessoal desistiu, sentou-se e ficou vendo a aeronave queimar. A seção dianteira logo pegou fogo também e a fuselagem inteira desabou, restando uma parte da seção central e das asas, assim como os motores, relativamente inteiros.

Greenamyer foi muito criticado pela atabalhoada e frustrada tentativa de remover o Kee Bird da Groenlândia, e foi taxado como "pouco profissional" pelo pessoal da equipe, ao destruir por negligência uma aeronave raríssima.

Embora tivesse circulado rumores de que os restos do Kee Bird tivessem sido resgatados por Greenamyer, o fato é que os restos do avião estão lá até hoje, incluindo os motores remanufaturados, segundo alguns, emprestados, que foram levados para funcionar e voar o avião. Repousam no lago congelado, talvez agora para sempre.

(Artigo atualizado em 19 de julho de 2016)

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Londrina no tempo dos táxis aéreos

Em 1938, Londrina ganhou seu primeiro aeroporto, situado num terreno doado pelos irmão Palhano, próximo ao atual Patrimônio do Espírito Santo. Isso deu um novo impulso ao desenvolvimento da cidade e de toda a região, Afinal, as estradas que davam acesso ao Norte do Paraná eram de trânsito difícil: a terra roxa, tão fértil, cobrava seu preço na forma de pó ou de lama nas ruas e estradas.
Aviões Beech Bonanza da RETA no Aeroporto de Londrina
 Embora alguns aviões tivessem utilizado o aeroporto logo depois de aberto, em breve o racionamento generalizado  provocado pela eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939, tornou o aeroporto quase deserto, e essa situação perdurou até o final da guerra, em maio de 1945.

Após a guerra, o crescimento da aviação foi rápido, não somente em Londrina, mas em toda a região. As empresas aéreas regulares chegaram em 1946, e Londrina tornou-se um lugar atraente para se instalar empresas de táxi aéreo.
Aeroporto de Londrina nos primeiros tempos
Não demorou para aparecer vários operadores de táxi aéreo na região. Prestavam todo tipo de serviço, além de transportar passageiros: fotografia aérea, transporte de pequenas cargas, transporte de urnas funerárias, doentes graves, e outros. Eventualmente, faziam os chamados "voos da coqueluche", nem sempre cobrados: crianças doentes embarcavam nos aviões, que depois voavam bem alto, já que se dizia, sem qualquer embasamento médico, que voar alto, com baixa pressão atmosférica, melhorava a saúde dos pacientes. Os pequenos aviões não paravam quase nunca, a não ser por motivos meteorológicos.
Bonanzas da RETA no Aeroporto de Londrina, nos anos 60.
Uma das maiores empresas de táxi aéreo criadas em Londrina foi a RETA - Rede Estadual de Táxi Aéreo. Operando principalmente aeronaves monomotores Cessna 170, e também aviões mais potentes, como o Beechcraft Bonanza, aeronave que se tornou emblemática na região, e depois bimotores, como os Piper Aztec e os Beechcraft Baron e Twin Bonanza. Os criadores da RETA foram os comandantes Sidney Polis e Milton Jensen.
O PP-APR foi o primeiro Beech Baron a vir para Londrina, mas infelizmente, foi perdido em acidente pouco depois, em 1964 (foto: Raul Palhão)
O primeiro Beechcraft Baron da RETA, matriculado PP-APR, infelizmente, foi perdido num acidente em 08 de julho de 1964, ao chocar-se contra uma casa, ao fazer um voo de check de piloto, e os dois pilotos perderam a vida nesse acidente.
Hangar da RETA, em Londrina
A RETA construiu um grande hangar no aeroporto atual de Londrina, mas esse hangar foi vendido à REAL na década de 50, e transferiu-se para outro hangar próximo da Avenida Santos Dumont. 
O PP-APC, Bonanza da RETA, no Aeroporto de Paranagué, em 1959 (Foto: Cmte. Flávio)
 Muitos pilotos particulares se associavam para operar táxi aéreo, em pequenas organizações, como a BOA - Brasil Operações Aéreas, durante a década de 1950.
Proprietários da RETA-Rede Estadual de Táxi Aéreo, a partir da esquerda: Sidney Polis e Milton Jensen, e um dos pilotos da empresa
Outra grande empresa de táxi aéreo de Londrina foi a STAR, capitaneada pelos comandante Anélio Viecelli e Francisco Moreira da Silva, o "Chico Manicaca". A STAR foi criada em Bauru/SP, mas a empresa foi vendida e transferida para Londrina. Uma empresa de Belo Horizonte, a Imperial Táxi Aéro (ITA), também veio a Londrina nessa efervescente era da aviação geral.
Anúncio do Consórcio STAR-Contax, com aeronaves Bonanza
Posteriormente, uma empresa de Marília/SP, a Contax, uniu-se à STAR e à Imperial, formando o consórcio STAR-ITA-Contax, que, então, passou a contar com uma enorme frota de aviões. Essa empresa operou até mesmo um avião quadrimotor, o De Havilland Heron, matriculado PP-STS, que em Londrina foi apelidado de "Constellation de Baiano", já que o principal operador do tipo, no Brasil, era a empresa baiana TAS - Transportes Aéreos Salvador.
O Heron PP-STS, o "Constellation de Baiano", que voou na STAR em Londrina
 Um dos pilotos da STAR-ITA-Contax foi um aviador chamado Rolim Adolfo Amaro. Rolim procurou emprego na Contax, mas essa empresa acabou vindo a Londrina para formar o consórcio com a STAR, e ele veio atrás. Conquistou a simpatia dos donos da empresa, mas não havia vaga de piloto para ele.

O PT-STS, que operou na STAR
Passou a ajudar na manutenção, a guardar e retirar aviões do hangar, e conseguiu até um pequeno aposento nos fundos do hangar. Mas não ganhava praticamente nada, se oferecia como voluntário para ajudar a limpar os Douglas DC-3 da Varig e da REAL para obter os restos do serviço de bordo dos aviões. Depois de algum tempo em Londrina, Rolim foi embora, para São José do Rio Preto.
O PT-BTA foi um dos três Beech Twin Bonanza que voaram na RETA (Foto: Cmte. Flávio)
Rolim Amaro acabou entrando no Táxi Aéreo Marília - TAM, e posteriormente adquiriu o controle da empresa, que depois se tornaria a regional Transportes Aéreos Marília, hoje TAM Transportes Aéreos, que ele tornou a maior empresa aérea do Brasil.

No final dos anos 50, se, por acaso, toda a frota de táxis aéreos baseadas em Londrina resolvesse pousar na cidade, não haveria espaço para abrigar os aviões, que somavam mais de 50, sendo a grande maioria constituída de monomotores Bonanza.
Remanescente da frota de Beechcraft Twin Bonanza da RETA, o PT-BXL encontra-se em restauração. A RETA teve três aviões do tipo: PT-BXL, PP-APQ e PT-BTA
Essa era dos táxis aéreos estava longe de ser ordeira. Muitos pilotos  não recusavam missões bem perigosas e nem mesmo voos de contrabando para o vizinho Paraguai. Os produtos contrabandeados eram, principalmente, café, do Brasil para o Paraguai, e, no rumo contrário, uísque e cigarros, nada de tráfico de drogas, hoje muito comum. Esses pilotos se autodenominavam "Legião Estrangeira".

O asfaltamento das rodovias do Norte do Paraná, a partir de 1958, e a grande geada de 1963, que destruiu muitos cafezais, fez diminuir drasticamente a procura por táxi aéreo, e os aviões partiram para outras fronteiras. A RETA mandou aeronaves para Redenção, no Pará, e depois para outras cidades da região do Rio Tocantins, que começavam a era dos garimpos. A empresa acabou transferindo sua sede para Curitiba. A STAR acabou se dissolvendo, e somente no final da década de 1980 é que outros operadores de táxi aéreo voltaram a se interessar por Londrina, e algumas empresas se estabeleceram na cidade, como a Catuaí Táxi Aéreo, a Seven Táxi Aéreo e a American Táxi Aéreo,  todas, no entanto, bem menores que as suas congêneres dos anos 50 e 60.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Desert Lil': aventuras e desventuras do B-25 do 1º Grupo de Caça

Durante a Segunda Guerra Mundial, a Força Aérea Brasileira formou e enviou à Itália o 1º Grupo de Aviação de Caça, que executou basicamente perigosas missões de ataque ao solo, uma vez que a aviação inimiga já tinha sido praticamente varrida dos céus do Mediterrâneo.
O Desert Lill' em Pisa, na pista de placas de aço perfuradas usada durante a guerra
 Como parte do 350º Fighter Group americano, onde era o Brazilian Fighter Squadron, o primeiro Grupo de Caça era atendido, nas missões de transporte, por aeronaves C-47 da USAAF, mas, no início de 1945, o 350º FG cedeu uma aeronave B-25C, que serviu diversas missões de combate no deserto do Norte da África e depois na Sicília e Sul da Itália.
Considerada obsoleto e "cansado de guerra", o velho B-25C 41-12872 atuou em combate no 82nd Bomber Squadron, do 12nd Bomb Group. Substituído na sua função de bombardeiro médio por aeronaves mais novas e melhor armadas, o B-25C, batizado com o nome de Desert Lil' pelos seus primeiros usuários, foi colocado à disposição, convertido em transporte pela remoção do seu armamento, e alocado ao 1º Grupo de Caça, então baseado em Pisa, na Toscana.
Perfil do Desert Lil', arte de Rudnei Cunha
O oficial de ligação entre a USAAF e o 1º GAv, Major John Willian Buyers, foi designado para buscar o avião, que escolheu pessoalmente entre as diversas "sucatas" disponibilizadas para o 350º FG.

O nome de "batismo" do avião, Desert Lil', foi mantido, mas a bonita pintura de uma "pin up girl" no nariz foi coberta por uma camada de tinta antes da entrega. A rala tinta utilizada não escondeu totalmente o desenho, que era possível de ser visualizado por baixo da pintura.
A pin up girl do Desert Lil' foi coberta por uma camada de tinta antes do avião ser entregue aos brasileiros
Como oficial-aviador, e não tendo nenhuma aeronave designada para voar, o major Buyers literalmente se "apropriou" do surrado B-25, e não deixava nenhum outro piloto voá-lo, pelo menos enquanto estivesse por perto...

O Desert Lil' liberou o 1º GAv de ter que solicitar os C-47 da USAAF sempre que precisava de transportar pessoal ou pequenas cargas, e tinha ótimo desempenho, apesar de estar bem desgastado: aliviado do peso do armamento e da maior parte da blindagem, praticamente não tinha restrições de peso para operar. No entanto, era bem apertado e desconfortável, além de ser frio e assustadoramente barulhento, defeitos bem característicos de todos os B-25. Mas ninguém reclamava, muito menos o Major Buyers, que tinha ciúmes do "seu" avião.
O pessoal do 1º Grupo de Caça, e duas enfermeiras da FEB, em frente ao Desert Lil'
Quando a guerra acabou na Itália, em 2 de maio de 1945, o Desert Lil' foi designado para buscar os pilotos brasileiros que estavam prisioneiros dos alemães ou desaparecidos em combate. O Coronel Nero Moura conseguiu "emprestar" mais três B-25 desarmados para atender às demandas para essa missão. Os pilotos designados a essa missão foram o Major Buyers, o Capitão Lagares e o Tenente Roberto Pessoa Ramos
O Desert lil' cruza os Alpes, na sua última missão de guerra: resgatar os prisioneiros (foto de John Buyers)
O Desert Lil' decolou de Pisa no dia 11 de maio de 1945, com destino à Áustria e Alemanha, onde os serviço de informação davam conta da existência de pilotos brasileiros nos campos de prisioneiros alemães. Lá chegando, verificaram que os prisioneiros haviam sido transferidos para a França, onde estavam aguardando algum tipo de transporte para voltar a Pisa e ao 1º GAv.

Em Paris, dois dos pilotos capturados pelos alemães, o Tenente Josino Maria de Assis e o Tenente Othon Correa Neto estavam alojados no Hotel Le France, aguardando algum meio de voltar a Pisa, mas sempre assistidos pelos americanos. As autoridades diplomáticas brasileiras em Paris, no entanto, foram totalmente ineficientes e até mesmo mal educadas com os pilotos brasileiros libertados, se recusando até a dar-lhes algum dinheiro para despesas pessoais.
Foto da descrição da aeronave no Manual de Operação
O pessoal do Desert Lil', no entanto, acabou achando os pilotos no hotel, e imediatamente providenciaram o transporte de volta a Pisa, não sem conhecer, antes, os pontos turísticos da capital francesa.

No voo de volta, os pilotos brasileiros aproveitaram para fazer uma rápida viagem turística através da Europa, mas ao chegar em Atenas, o trem de pouso direito do Desert Lil' quebrou-se devido a um pequeno acidente no pouso. O Coronel Nero Moura queria os pilotos em Pisa o quanto antes, e o velho Desert Lil' ficou para trás, foi abandonado e, provavelmente, seria sucateado depois disso. A bordo de outro avião, todos chegaram em Pisa no dia 15 de maio de 1945. Durante muitos anos, ninguém do 1º Grupo de Caça ficou sabendo de qualquer notícia a respeito do Desert Lil'.
 
O Desert Lil' acidentado em Atenas
O Desert Lil' nunca foi designado oficialmente à FAB, embora tenha servido por vários meses no 1º Grupo de Aviação de Caça e, consequentemente, jamais recebeu um número de carga, e jamais constou do inventário de aeronaves da FAB. O avião sempre operou com as identificações da USAAF até o fim.
 
Posteriormente, soube-se que o avião não foi sucateado, que foi recuperado e levado de volta aos Estados Unidos, onde ainda serviu por algum tempo.
Um B-25J sobrevivente, com pintura de camuflagem semelhante à usada pelo Desert Lil'
Atualmente, embora ainda existam vários B-25 sobreviventes, alguns em condição de voo, parece haver apenas 3 modelos B-25C, dois em restauração e um em exposição estática, mas nenhum voando.
Major John Buyers, em 1945

O "dono" do Desert Lil', o Major John W. Buyers, ainda está vivo e é o último piloto sobrevivente de todos os que serviram no 1º Grupo de Caça na Itália. Além de voar o Desert Lil', Buyers voou 21 missões de combate nos P-47D Thunderbolt, como voluntário, e tomou muito tiro dos alemães, mas nenhum derrubou o avião ou feriu-o. Buyers é cidadão americano, mas nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, e atualmente mora no Recife, Pernambuco.
O major Buyers hoje, na sua foto de perfil do Facebook, aos 95 anos de idade