Em 1º de maio de 1960, uma aeronave de reconhecimento americana Lockheed U-2, em missão de espionagem da CIA - Central Intelligence Agency, no espaço aéreo da União Soviética, foi abatida, causando um dos mais célebres incidentes da Guerra Fria. Seu piloto, Francis Gary Powers, sobreviveu e foi preso como espião, sendo mais tarde libertado em troca de um espião soviético, preso nos Estados Unidos.
O incidente de maio de 1960 interrompeu os voos de reconhecimento sobre o território soviético, considerados vitais pelos estrategistas americanos. Até então, os americanos julgavam que os U-2 não estavam sujeitos à interceptação pelos caças soviéticos, pois voava a cerca de 70 mil pés, muito acima do teto de serviço desses.
O Lockheed U-2 |
Mas o U-2 de Powers foi abatido por um míssil terra-ar acima de Sverdlovsk (atual Yekaterimburgo). Era evidente que a grande altitude deixara de ser proteção suficiente.
Imediatamente, os estrategistas americanos sentiram a necessidade de uma aeronave capaz de voar tão alto quanto o U-2, mas com pelo menos o dobro da velocidade. O U-2 era subsônico, na verdade uma aeronave semelhante a um planador impulsionada por um único motor turbojato sem pós combustão.
A resposta aos seus anseios veio do projeto de uma aeronave de reconhecimento projetada pelo ultra-secreto laboratório da Lockheed "Skunk Works", chefiado pelo brilhante projetista Clarence "Kelly" Johnson. Destinada à CIA, essa aeronave, o A-12, foi desenhada especificamente para substituir os eficientes mas lentos U-2, também projetados pela "Skunk Works".
O A-12 superou as expectativas da CIA, pois podia voar à incrível velocidade de Mach 3,35, ou mais, cerca de 3.500 Km/h a 75 mil pés. Seu teto de serviço presumido era de 85 mil pés, mas há notícias, ainda mantidas em segredo, sobre operações que podem ter chegado a 100.000 pés. Em suma, era simplesmente mais rápido e podia voar mais alto que todos os mísseis terra-ar da época. Tinha ainda a vantagem adicional de ser quase invisível aos radares, devido ao seu formato incomum e ao uso de materiais absorventes de ondas de rádio, podendo ser considerado com justiça como o primeiro avião "stealth" da história.
Inicialmente desenvolvido na fábrica da Lockheed em Burbank, nos arredores de Los Angeles, os programas A-12, YF-12 e SR-71 foram transferidos para uma remota base de testes localizada em Groom Lake, Nevada, um lago seco salgado, base que se tornaria mundialmente famosa pela designação de Area 51. A base de Edwards, principal base de testes da Força Aérea, ficava perto demais de Los Angeles e de locais habitados para manter o sigilo necessário requerido pelo Departamento da Defesa.
Groon Lake fica perto da Área de Testes Nucleares do Deserto de Nevada, e é muito mais isolada que Edwards, um local ideal para os testes dessas máquinas revolucionárias, sem atrair a atenção de curiosos e espiões.
O A-12 voou pela primeira vez em 25 de abril de 1962. A Força Aérea dos Estados Unidos solicitou um interceptador armado baseado no A-12, designado YF-12A, mas tal programa foi posteriormente cancelado, com apenas três aeronaves produzidas.
Apenas 3 aeronaves de caça YF-12A foram construídas, antes do programa ser cancelado. |
A partir dos A-12 e YF-12A, a Lockheed chegou a um design final para a Força Aérea, mais longo e mais pesado que seus predecessores, designado SR-71 (SR de Strategic Reconnaissance - Reconhecimento Estratégico).
As aeronaves A-12, YF-12A e SR-71, mostrando suas principais diferenças entre eles |
Muitos problemas técnicos precisaram ser resolvidos para que o SR-71 e seus antecessores. Para começar, as altas velocidades desenvolvidas implicam em grande aquecimento da estrutura do avião durante o voo, devido aos efeitos do atrito aerodinâmico e da compressibilidade. Nenhuma liga de alumínio suportaria tal aquecimento sem perder a resistência. Decidiu-se, então, substituir as ligas de alumínio pelo caro, mas muito mais resistente, titânio. Praticamente 85 por cento da estrutura primária do SR-71 foi construída com esse material. Composites foram usados em cerca de 15 por cento da estrutura, em partes não sujeitas a aquecimento crítico.
O problema é que o principal produtor mundial de titânio, na época, era a União Soviética, e obviamente não seria conveniente para a Lockheed importar diretamente tal material de lá, se é que os soviéticos iriam mesmo vender para a empresa. Isso foi resolvido pela CIA, que criou empresas civis de fachada, que adquiriam o material em quantidades relativamente pequenas, e repassavam para a Lockheed. Interessante é que os soviéticos não usaram titânio nas suas aeronaves mais velozes, como o Mig 25. Usaram o pesado, mas mais prático, aço inoxidável.
Outro problema se referia ao combustível. O querosene utilizado nas aeronaves militares da época, o volátil JP-4, poderia evaporar e explodir facilmente nas grandes altitudes e nas altas temperaturas estruturais sofridas pelo SR-71. Tal problema foi resolvido pela criação de um combustível especialmente projetado para o avião, denominado JP-7. O JP-7 é um líquido viscoso, tão pouco volátil que pode-se apagar um fósforo aceso mergulhando-o numa lata cheia desse combustível. O JP-7 somente produz vapores inflamáveis à temperatura de 60ºC.
Um avião tanque foi especialmente preparado para atender o SR-71. Era o Boeing KC-135Q, que foi equipado com uma lança de abastecimento capaz de ser operada sem vibrações quase na velocidade máxima do avião. Usualmente, o SR-71 decolava com muito pouco combustível, e era abastecido no ar logo após decolar. Isso permitia que o avião decolasse mais leve, sem forçar demais a estrutura, e permitia também o voo monomotor logo após a decolagem, se houve uma pane num dos motores.
Os motores representaram outro desafio. Acima de Mach 2, o fluxo de ar de impacto tende a perturbar o funcionamento dos compressores convencionais, congestionando o fluxo e causando colapso do mesmo, e consequente apagamento do motor.
A Pratt & Whitney desenvolveu então um motor especialmente projetado para operar a Mach 3, o J-58, um turbo-jato convencional com pós-combustor, mas equipado com IGV (Inlet Guide Vanes) que se fecham totalmente á velocidades acima de Mach 3,2. O fluxo de ar deixa de passar pelos compressores e vai direto aos pós combustores. O motor então passa a funcionar como um estato-reator (Ramjet). O fluxo de ar no motor nas diversas velocidades é detalhado na ilustração abaixo.
A Pratt & Whitney desenvolveu então um motor especialmente projetado para operar a Mach 3, o J-58, um turbo-jato convencional com pós-combustor, mas equipado com IGV (Inlet Guide Vanes) que se fecham totalmente á velocidades acima de Mach 3,2. O fluxo de ar deixa de passar pelos compressores e vai direto aos pós combustores. O motor então passa a funcionar como um estato-reator (Ramjet). O fluxo de ar no motor nas diversas velocidades é detalhado na ilustração abaixo.
O motor J-58 é o único motor americano concebido para operar em regime de pós-combustão contínua. Desenvolve 32.500 libras de empuxo estático.
Os motores Buick V-8 usados no trole de partida do SR-71 |
Como o combustível JP-7 é muito pouco volátil em baixas temperaturas, a partida do motor resultou em um sério problema. Usa-se um combustível especial para a partida, o borato de trimetila, que se inflama espontaneamente em contato com o ar e produz uma característica chama de cor verde, até que a temperatura das câmaras permitisse o uso do JP-7. Para dar a partida no motor, usava-se um starter externo com dois motores automotivo Buick V-8 envenenado, com 401 polegadas cúbicas de cilindrada e 325 HP de potência cada um, que era acoplado ao compressor.
O trole de partida AG-330 tinha uma potência total de 650 HP |
A maior parte dos problemas encontrados na operação do SR-71 eram relativos às altas temperaturas de serviço, em grande velocidade. Esse aumento da temperatura se dava principalmente devido à compressibilidade, mas o atrito também colaborava bastante.
A temperatura nos pára-brisas chegava a 260ºC. A pintura quase preta usada no avião, que lhe rendeu o apelido de "Blackbird" (pássaro preto), era especialmente projetada para difundir essas altas temperaturas, e o avião ia mudando de cor a medida que a pintura aquecia, ficando em um tom azul pálido nas mais altas velocidades.
Temperaturas encontradas na estrutura de um SR-71 em grande velocidade |
Para compensar a dilatação da estrutura devido á alta temperatura, a mesma era construída em painéis com juntas de dilatação, que davam espaço para a expansão do material. O avião ficava com várias polegadas a mais de comprimento quando estava voando. No chão, quando a estrutura "encolhia", as fendas dos tanques, por exemplo, abriam, e o combustível vazava copiosamente, sendo recolhido em grandes bandejas colocadas embaixo da aeronave.
O fluido hidráulico usado nos SR-71 congelava a 30ºC, e era necessário esperar que o mesmo se aquecesse o suficiente para se obter a pressão necessária à operação dos sistemas.
Tripulações do SR-71, com seus trajes de astronauta |
Sobreviver a bordo em condições de grande altitude e velocidade também constituía um problema sério. Os tripulantes usavam um traje de voo pressurizado semelhante aos dos astronautas dos programas Mercury e Gemini, em suas missões. O sistema de ejeção também foi projetado especialmente para permitir a sobrevivência em grandes altitudes e velocidades.
Piloto do SR-71 com seu uniforme pressurizado |
O SR-71 Blackbird voou pela primeira vez em 22 de dezembro de 1964, entrando em serviço ativo em janeiro de 1966. Foram alocados primeiramente na Base Aérea de Beale, na Califórnia, mas eram deslocados frequentemente para bases operacionais no exterior, como Kadena, em Okinawa, e Mildenhall, na Grã Bretanha.
O estranho formato do avião reduzia muito a sua assinatura de radar. Foi, na verdade, o primeiro avião furtivo da história |
Os SR-71 podiam fazer, graças à grande altitude, a vigilância de 270 mil quilômetros quadrados por hora, e isso sem precisar sobrevoar território inimigo. Uma missão sobre Cuba, por exemplo, podia durar meros 4 minutos. Dezenas de milhares de fotografias eram tiradas durante cada missão. Não eram armados, mas possuíam uma suíte de equipamentos defensivos, em sua maior parte constituídos de equipamentos de contramedidas eletrônicas.
O painel de instrumentos do Blackbird era composto de instrumentos analógicos convencionais, mas sua eletrônica embarcada era revolucionária, como os sistemas de navegação astroinerciais |
Uma aeronave tão avançada e veloz exigiu um sistema de navegação à sua altura. Foi desenvolvido um sistema de navegação inercial cuja correção era feita pelo rastreamento de estrelas no céu, mesmo durante o dia.
Chamado de astroinercial, esse sistema é totalmente autônomo e independente de satélites para seu funcionamento, e constitui o sistema de navegação principal das aeronaves "invisíveis" da Força Aérea dos Estados Unidos. Na verdade, o avião não conseguia usar, enquanto estava operacional, o sistema GPS, ele era simplesmente mais rápido que os computadores usados pelos receptores para dar sua posição precisa.
Detalhes do painel de instrumentos |
Nenhum dos 32 SR-71 Blackbird jamais foi abatido, embora 12 aeronaves tenham sido perdidas em acidentes. Isso constitui uma façanha notável, já que durante a Guerra do Vietnam muitas missões foram conduzidas sobre Hanói, então uma das mais bem defendidas cidade do mundo. Sabe-se que mais de 100 mísseis terra-ar (SAM) foram lançados contra as aeronaves em missão, mas nenhum atingiu seu alvo. Ataques originados de aeronaves de caça nunca ocorreram.
Embora fosse uma aeronave de desempenho e eficiência espetaculares, o SR-71 tinha um altíssimo custo operacional. Foi talvez a aeronave de maior custo operacional da história. Com o desenvolvimento de satélites espiões de grande capacidade, a Força Aérea resolveu desativar os Blackbird em outubro de 1989. Todavia, os aviões foram reativados novamente quando, em 1993, os americanos sentiram necessidade deles devido à delicada situação internacional no Oriente Médio e na Coréia do Norte. Três aeronaves foram colocadas novamente em operação, a partir de 1995, mas foram retiradas de serviço definitivamente em 1998.
Todos os SR-71 remanescentes foram enviados a Museus, exceto três aeronaves que foram entregues ao Dryden Research Center da NASA, em Edwards AFB, para uso em pesquisa de voos em grande velocidade e altitude. Seu status operacional atual é desconhecido, mas o último voo oficial ocorreu em 09 de outubro de 1999.
Um SR-71B, usado para treinamento dos pilotos. Tinham duplo comando, e o instrutor voava no assento traseiro elevado |
Duas aeronaves da versão SR-71B, com comandos duplos, foram construídas para treinamento operacional de tripulantes. Essa versão tinha o cockpit traseiro elevado, para permitir melhor visibilidade ao instrutor de voo.
O único SR-71C construído. Sua parte traseira foi aproveitada de um antigo YF-12A |
Um único exemplar SR-71C foi uma aeronave híbrida composta da parte traseira de um antigo YF-12A e da parte frontal de uma estrutura estática de SR-71. As versões operacionais eram SR-71A, e tinham dois tripulantes, um piloto e um operador de sistemas de reconhecimento.
O Lockheed SR-71 Blackbird detém vários recordes mundiais de altitude e velocidade para aviões: Recorde de velocidade absoluta: 1905,81 Knots, ou 3.529,56 Km/h; Altitude absoluta: 85.069 pés; Voo New York - Londres: 1 hora, 54 minutos e 56 segundos. Há relatos de recordes acima desses valores, incluindo voos acima de 100 mil pés, mas isso aconteceu durante missões operacionais, e não em testes, e ainda são classificadas como secretas pelo Departamento da Defesa.
Ao todo, 3551 missões de voo foram cumpridas pelos SR-71, durante os 35 anos da sua vida útil. Quando foi retirado de serviço, não havia aeronave que o substituísse a contento. Apenas recentemente o Departamento da Defesa admitiu a existência de uma aeronave SR-72, mas sem dar maiores detalhes.
Aeronaves SR-71 reunidas em Beale |
Li uma vez que houve uma inversão da sigla do avião, que deveria se chamar RS-71, uma gafe causada pelo Presidente Lindon Johnson em uma entrevista e que foi mantido SR-71 pela USAF ou NASA por consideração ao Presidente. Isso é correto?
ResponderExcluirJose Paulo....acabei de ler o "SR-71 The Complete Illustrated History of THE BLACKBIRD The World’s Highest , Fastest Plane”, sobre a historia do projeto...e não ha nenhuma referencia sobre essa informação, o piloto que faz os relatos, se refere sempre como SR-71
ExcluirAbçs
Sim é verdade José Paulo o nome foi trocado pelo Presidente que referiu. E na altura trocou-se o nome do avião porque nenhum americano se atreveria a emendar um presidente. Eu vi isso no odisseia e ve-se o Presidente a dizer o nome do avião ao contrário. Logo há veracidade nas suas palavras
ExcluirJoão Paulo, eu já ouvi falar disso, mas está me parecendo um mito. Como não pude confirmar, omiti a informação.
ResponderExcluircara seria possivel diminuir aquele motor mas continuar com a potencia?
ResponderExcluirBruno, sim, pois a tecnologia de motores se desenvolveu muito nos quarenta e cinco anos transcorridos desde a concepção do SR-71
ResponderExcluirSaliento que sou apenas um mero adimirador de aeronaves! Mas, olha, muito bom o artigo, mas fiquei curioso, pois pelo que pude notar, este motor é o antecessor dos que equipam hoje os f-22 Raptor?
ResponderExcluirGleister, os motores P&W F119 dos F-22 Raptor são bem diferentes da J58, pois foram projetados para proporcionar velocidade de cruzeiro supersônica ao avião sem o uso dos pós-combustores, enquanto o motor do SR-71, o J58, durante o voo supersônico, utiliza somente os pós combustores, dispensando os compressores e turbinas, funcionando como RAMJET. Espero ter esclarecido. Muito obrigado pela visita.
ResponderExcluirFantástico artigo Jonas, e esse avião é uma lenda, parabéns...
ResponderExcluir3.529km/h é poko, ñ acham ???
ResponderExcluirVale lembrar que o titânio usado na fuselagem foi comprado da própria URSS por uma empresa fantasma da CIA. Excelente artigo !
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirSem dúvida essa aeronave é uma façanha do engenho humano !!
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ResponderExcluirUm máquina maravilhosa !!! Pena ter saído de serviço.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
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ResponderExcluirExcelente artigo !! muito esclarecedor
ResponderExcluirno caso o SR-71 poderia ser mais rapido que o som ?
ResponderExcluirSim, e não somente é mais rápido que o som, mas é TRES vezes mais rápido. Um desempenho impressionante.
ExcluirParabéns pelo autor deste artigo. Está ótimo.
ResponderExcluirParabéns pelo autor deste artigo. Está ótimo.
ResponderExcluirMuito bom. Parabéns. Quero receber novidades do blog
ResponderExcluirdizem que nunca foi realmente alcançado o limite de velocidade dos motores, os pilotos paravam de acelerar quando o para-brisas começava a derreter
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