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quarta-feira, 29 de junho de 2011

Lucky Lady II: O primeiro avião a dar a volta ao mundo sem escalas

Ao terminar a Segunda Guerra Mundial, os festejos de paz foram logo substituídos pelo clima de tensão internacional e pelo medo crescente de um novo conflito mundial, envolvendo, dessa vez, dois poderosos inimigos, os Estados Unidos e  a União Soviética.
O Lucky Lady II, primeiro avião a dar a volta ao mundo sem escalas
A tensão chegou a um ponto crítico quando, em junho de 1948, a União Soviética bloqueou o acesso terrestre a Berlim Ocidental, que ficaria totalmente isolada se não fosse a Ponte Aérea implantada pelos americanos para abastecer a cidade (ver artigo sobre o assunto nesse blog: http://culturaaeronautica.blogspot.com/2010/05/tempelhof-o-fim-do-aeroporto-que-salvou.html).

A recém criada Força Aérea dos Estados Unidos (USAF) era, então, o mais poderoso instrumento de dissuasão contra os soviéticos, pois dispunha de armamento nuclear.
O Boeing B-50A Lucky Lady II
Entretanto, era necessário provar aos soviéticos que os Estados Unidos poderiam alcançar qualquer lugar da União Soviética, e do mundo, com os seus bombardeiros nucleares. Até então, essa possibilidade era factível, mas meramente teórica, pois nunca tinha sido demonstrada.
O General Curtis LeMay
O General Curtis E. LeMay assumiu o  Comando Aéreo Estratégico (SAC) em, outubro de 1948. LeMay e o General Hoyt Vandenberg, Chefe do Estado Maior da Força Aérea, a pedido do Secretário do Ar W. Stuart Symington, planejaram uma espetacular demonstração de que os obstáculos geográficos e a distância já não poderiam garantir segurança aos soviéticos contra um possível ataque aéreo americano.

LeMay e Vandenberg finalmente decidiram que uma volta ao mundo de uma aeronave militar, sem escalas para reabastecimento, seria uma demonstração de poder suficiente para desencorajar eventuais planos de expansão soviéticos.
A rota percorrida pelo Lucky Lady II
Era um grande desafio: o avião que realizasse a missão deveria fazer vários reabastecimentos em voo, levar pelo menos duas tripulações e suprimentos para uma viagem tão longa, como alimentos e óleo lubrificante extra para os motores.

O bombardeiro de maior raio de ação então em serviço na USAF era o Boeing B-50, um desenvolvimento dos antigos B-29 da Segunda Guerra Mundial, equipado com quatro poderosos motores Pratt & Whitney R4360 de 28 cilindros e 3.500 HP cada um, e que podia levar uma grande capacidade de combustível, pois podia ser equipado com tanques subalares e tanques extras nos compartimentos de bombas.
Motor Pratt & Whitney R-4360, do B-50
Embora o B-50 fosse um bom avião, seus motores (foto acima) tinham fama de serem "temperamentais e, ocasionalmente, pirotécnicos"... A falha ou o fogo no(s) motor(es) seriam riscos que teriam que correr.

O outro problema era o reabastecimento: o único sistema disponível de reabastecimento no ar, à epoca, era o probe-and-drogue, que consiste em uma mangueira de reabastecimento, estabilizada por uma espécie de "cesto" e rebocada pelo avião-tanque (foto abaixo). O avião receptor deveria voar em formação com o avião tanque e encaixar uma sonda no centro do "cesto", onde válvulas liberavam o fluxo de combustível do avião-tanque para o avião receptor. Não havia bombas, o combustível fluía por gravidade. 
Sistema "probe-and-drogue"
O sistema era confiável, mas exigia boa habilidade do piloto do avião receptor, e qualquer reabastecimento noturno estava totalmente fora de questão, por questões de segurança.

Três aeronaves B-50A foram designadas para a missão. O B-50A Global Queen, comandado pelo Tenente Jewellfoi escolhido como aeronave primária para a volta ao mundo. Os B-50A Lucky Lady II e Lone Ranger foram escalados como aeronaves reserva.
Avião-tanque Boeing KB-29M
Quatro pares de aviões tanques Boeing KB-29M (foto acima) foram despachados para Lajes, nos Açores, Dhahram, na Arábia Saudita, Clark Field nas Filipinas e Rogers Field, no Havaí. As missões de reabastecimento foram espaçadas de modo que ocorressem sempre pela manhã de cada dia.
Os pilotos do Lucky Lady II, durante a missão
No dia 25 de fevereiro de 1949, o B-50A Global Queen levantou voo de Carswell AFB, em Fort Worth, no Texas. Os motores R4360 do avião fizeram jus à sua fama de "pirotécnicos", no entanto: um incêndio de motor fez o Global Queen abortar a sua missão em Lajes, nos Açores, onde pousou na manhã de 26 de fevereiro.

O primeiro reserva, o Lucky Lady II, com sua tripulação de prontidão, foi ativado e decolou às 12 horas e 21 minutos de Carswell. Sua tripulação era composta dos seguintes membros:

Capitão James G. Gallagher, comandante da aeronave e da missão;
Primeiro tenente Arthur M. Neal, copiloto;
Capitão James H. Morris, copiloto;
Capitão Glenn E. Hacker, navegador;
Primeiro-Tenente Earl Rigor, navegador;
Primeiro-Tenente Ronald B. Bonner, operador de radar;
Primeiro-Tenente William F. Caffrey, operador de radar;
Capitão David B. Parmalee, engenheiro chefe de tripulação;
Terceiro-Sargento Virgil L. Young, engenheiro de vôo;
Segundo-Sargento Robert G. Davis, engenheiro de vôo;
Terceiro-Sargento Burgess C. Cantrell, engenheiro de rádio;
Segundo-Sargento Robert R. McLeroy, engenheiro de rádio;
Terceiro-Sargento Melvin G. Davis, armas e reabastecimento;
Segundo-Sargento Donald G. Traugh Jr., armas e reabastecimento;

Todos os tripulantes, com exceção do Capitão Parmalee, pertenciam ao 63º Esquadrão de Bombardeio, 43º Grupo de Bombardeio. 
Cumprimentos pela missão
O Lucky Lady II cumpriu toda a missão com absoluto sucesso, sem maiores problemas técnicos. Após decolar de Carswell, voou por 20379 milhas náuticas (37.742 Km) durante 3 dias, 22 horas e 1 minuto, mantendo uma média de velocidade de 216 Knots GS (Ground Speed), até pousar novamente em Carswell, às 10 horas e 31 minutos de 02 de março de 1949, dois minutos antes do tempo estimado pelos navegadores antes da decolagem da missão.
O Lucky Lady II retorna a Carswell
O voo foi feito em uma altitude entre 10 e 20 mil pés, em todo o seu percurso. Poucos problemas meteorológicos perturbaram a missão.

Uma tragédia, no entanto, marcou a viagem: um dos aviões-tanques KB-29M, ao retornar para Clark Field, nas Filipinas, caiu, matando o  comandante Fuller e toda a sua tripulação.

Mantendo uma estafante escala de quatro ou seis horas de trabalho para menos de 6 horas de descanso, não é de se admirar que os tripulantes tenham chegado ao fim da sua missão consideravelmente cansados.
A tripulação recebe os cumprimentos pela missão bem sucedida
Os tripulantes foram festivamente recepcionados, em seu regresso, pelo Secretário Symington e pelos Generais LeMay, Vanderberg e o Major-General George P. Ramey, Comandante Geral da Oitava Força Aérea. 

LeMay considerou a missão como uma indicação de que a USAF já tinha a capacidade de decolar, em missões de bombardeio, de qualquer lugar nos Estados Unidos, para "qualquer lugar no mundo que exigisse a utilização da bomba atômica". Ele declarou, ainda, que o reabastecimento no ar também poderia ser usado para os aviões de caça. Por sua vez, Symington observou que reabastecimento aéreo iria "transformar bombardeiros médios em bombardeiros intercontinentais".
A fuselagem preservada do Lucky Lady II
Todos os tripulantes do avião foram condecorados com a Distinguished Flying Cross, e mais tarde receberam também o Troféu Mackay, um prêmio anual concedido ao "voo mais relevante do ano", além de outras condecorações e prêmios. 
Estado atual do Lucky Lady II
O B-50A-5BO Lucky Lady II era equipado com 12 metralhadoras calibre .50, além de um tanque de combustível adicional acrescentado no compartimento de bombas, para fornecer autonomia adicional. Seu Serial Number era 46-0010. Infelizmente, o avião sofreu um acidente com perda total, pouco tempo depois do seu voo ao redor do mundo. Sua fuselagem foi parcialmente restaurada, e atualmente encontra-se preservada e em exibição no Museu Planes of Fame, em Chino, Califórnia.

Apenas cinco bombardeiros Boeing B-50 ainda existem, e nenhum deles pode mais voar.
A fuselagem do Lucky Lady II, em Chino
O Lucky Lady II foi apenas um de três aviões de nome semelhante, todos ligados às circunavegações da Terra:

O Lucky Lady original foi um dos dois B-29 Superfortress que fizeram uma viagem de volta ao mundo entre julho e agosto de 1948, voando de volta para Davis-Monthan AFB, no Arizona, completando 17.400 Milhas Náuticas (32.000 km) de vôo em 15 dias depois de fazer oito paradas ao longo do caminho, com 103 horas e 50 minutos de voo.


O Lucky Lady III foi um dos três B-52 Stratofortress (foto abaixo) que fizeram uma circunavegação em janeiro de 1957, como parte da Operação Power Flite, voando de Castle AFB, na Califórnia, e completando a 21.138 milhas náuticas (39.147 km) de vôo em 45 horas e 19 minutos, a 466 Knots GS (863 km/h) com a assistência de aviões-tanques Boeing KC-97 Stratotankers
Os B-52 da missão Power Flite, em janeiro de 1957
Pouco mais de oito anos depois, o B-52 Luck Lady III fez a viagem ao redor do mundo em menos de metade do tempo exigido pelo Lucky Lady II.

Quanto aos efeitos estratégicos, o sucesso da missão não pôde ser avaliado com certeza. Os soviéticos suspenderam o bloqueio de Berlim em setembro de 1949, mas a explosão da primeira bomba nuclear russa, em agosto do mesmo ano, ofuscou inteiramente a grande façanha do Lucky Lady II, ao menos do ponto de vista puramente militar.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Roberto Carlos em Ritmo de Aventura: o helicóptero que passou dentro de um túnel no Rio de Janeiro

Em 1967, o cantor Roberto Carlos e o movimento musical da Jovem Guarda faziam grande sucesso. O cineasta Roberto Farias, inspirado no sucesso dos filmes dos Beatles, produziu um filme estrelado pelo cantor, intitulado "Roberto Carlos em ritmo de aventura", em cuja trama ele era perseguido por uma quadrilha internacional, enquanto fazia um filme. O principal vilão era interpretado por José Lewgoy.
A história, um tanto ingênua, serviu como fundo para clipes de músicas de grande sucesso do cantor, à época, como "Quando", "Como é grande o meu amor por você", "Eu sou terrível" e outras. Na verdade, essa trilha sonora foi uma das melhores de todos os tempos, entre todas as trilhas produzidas para filmes, no Brasil.

Produzido há 44 anos, o filme é repleto de cenas extremamente nostálgicas de cidades como o Rio de Janeiro, São Paulo, Nova York e outras.
Cena de aventura do filme no Corcovado
Todavia, a mais famosa e memorável sequência, de aproximadamente seis minutos, produzida para o filme foi um sobrevoo da cidade do Rio de Janeiro, a bordo de um helicóptero, a baixa altura.

Executar tal sequência não foi uma tarefa fácil. O helicóptero foi contratado junto à VOTEC - Vôos Técnicos e Executivos S/A. Era um Hughes 300, matriculado PT-HAZ, pilotado pelo experiente e hábil comandante Antônio Carlos Nascimento.
A entrada do Túnel do Pasmado, em Botafogo, em cena do filme
Era necessário obter autorização tanto da Aeronáutica quanto da Prefeitura do Rio de Janeiro, pois o helicóptero passaria por dentro do Túnel do Pasmado, que liga o bairro do Botafogo aos de Copacabana e Urca, pelas Avenidas das Nações Unidas e Lauro Sodré, exigindo então um bloqueio temporário do trânsito no local. A preparação para tal sequência levou um mês inteiro.

A prefeitura concedeu autorização, válida para uma única manhã de domingo. O DAC - Departamento de Aviação Civil pediu ao piloto que fizesse uma exposição de como iria fazer o voo dentro do túnel, pois havia a preocupação que vento produzido pelo rotor subisse pelas paredes do túnel e derrubasse a aeronave. O comandante respondeu todas as perguntas e, diante de sua confiança, o DAC autorizou o voo.

De posse das duas autorizações, o comandante Nascimento e a equipe de filmagem foram para o túnel, em uma manhã de domingo, mas o voo não pode ser feito. Havia um engarrafamento de trânsito no local, devido a um trabalho de repintura das ruas, que deveria ter sido feita no dia anterior, mas que acabou atrasando. Um funcionário da Prefeitura foi ao local e pediu, "pelo amor de Deus", para não fazerem a filmagem naquele dia, para não piorar as coisas.

Não restou outra opção, senão adiar a filmagem. A produção teve que conseguir todas as autorizações de novo, pois eram válidas apenas para aquele dia. Ainda por cima, agora teriam que enfrentar, além da burocracia, o medo dos funcionários, que temiam que alguma coisa não desse certo, e que atrapalhasse o serviço deles.

Depois de duas semanas, a equipe novamente se deslocou para o túnel, na entrada do lado do Botafogo. O piloto executou primeiro um voo de teste, o qual foi muito bem sucedido, apesar das dificuldades apresentadas: o túnel era baixo (6,3 metros de altura máxima), estreito (20 metros) e, embora não fosse muito longo (220 metros), tinha o Viaduto Pedro Álvares Cabral logo antes da entrada. Um único policial bloqueou o trânsito, pois as autoridades queriam o "menor escândalo possível".
Sobrevoando o Rio, em meio aos prédios
O voo seguinte foi feito com o próprio diretor Roberto Farias, com a câmera, ao lado do piloto. O helicóptero passou acima do viaduto, desceu entre esse e a boca do túnel, passou o mesmo em voo rasante, sobrevoou o Morro da Babilônia, ainda sem a favela, e passou a sobrevoar Copacabana, depois o centro do Rio, a Baía da Guanabara, até finalmente pousar no heliponto do prédio do Banco do Estado da Guanabara (BEG), que depois viraria Banerj e hoje é o Banco Itaú.

As cenas gravadas a bordo são de tirar o fôlego: o helicóptero, conduzido com audácia e precisão, voou em meio aos prédios da cidade. Logo no início, nota-se a ausência do Shopping Rio-Sul e do Edifício Rio-Sul Center, construídos muito depois, no final dos anos 70. Em outra cena, aparece o Palácio Monroe, que foi sede do Senado Federal, quando o Rio era a Capital Federal, e que foi demolido, sem necessidade, para as obras do Metrô, em março de 1976.

O Palácio Monroe
Pode-se ver, ainda, em Copacabana, a Avenida Atlântica, antes de ser duplicada, e sem o famoso calçadão.

O helicóptero sobrevoou, ainda, o saudoso transatlântico Eugênio C., que por mais de 20 anos ligou a Europa à América do Sul, e era assíduo frequentador do Porto do Rio de Janeiro. Pode-se ver, ainda, a Baía da Guanabara sem a Ponte Rio-Niterói.
O transatlântico italiano "Eugênio C"
Durante o voo, são executadas duas músicas, "Namoradinha de um amigo meu" e "Canzone per te". Roberto Carlos ganharia o Festival de San Remo no ano seguinte, com essa última música, de autoria de Sérgio Endrigo.

Depois do pouso, o helicóptero decolou e voltou para o túnel do Pasmado, repetindo a façanha da travessia, com Roberto Farias, agora sem a câmera, servindo de dublê para Roberto Carlos, para as tomadas externas.
Roberto no terraço do Edifício Copan, em São Paulo, cantando "Quando", em outra sequência do filme
Ao todo, o filme "Roberto Carlos em ritmo de aventura" é uma obra interessante, e hoje, muito nostálgica. Todos os clipes foram muito bem feitos, embora as "aventuras" fossem, em grande parte, inverossímeis. Entre as cenas de ação, além da sequência do helicóptero, merecem destaque uma perseguição de carros em plena descida do Corcovado e um voo da Esquadrilha da Fumaça, ainda com os velhos North American T-6. Em suma, o filme é imperdível.
Nos dias de hoje, seria praticamente impossível realizar a façanha do Comandante Nascimento no Túnel do Pasmado. Tal façanha talvez nem seria mais necessária, com a tecnologia de hoje, onde a computação gráfica e os efeitos especiais dominam o cinema.
De qualquer forma, o sobrevoo do Rio de Janeiro de 1967, a bordo do pequeno Hughes, com ou sem Roberto Carlos, será sempre uma das mais marcantes cenas do cinema brasileiro.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Avrocar: um verdadeiro disco voador

Um dos mais incomuns programas de aeronaves militares V / STOL  foi o Avro VZ-9 "Avrocar". Projetado para ser um verdadeiro disco voador, o Avrocar foi um dos poucos V/STOL a ser desenvolvido em completo sigilo. Apesar das mudanças significativas na concepção, durante ensaios em vôo, o Avrocar foi incapaz de alcançar os seus objetivos, e o programa acabou por ser cancelado, após um gasto de 10 milhões de dólares americanos, entre 1954 e 1961.
Figura 1: O Avrocar: autêntico disco voador
DESENVOLVIMENTO DO PROJETO AVROCAR

Em 1952, uma equipe de projeto liderado por Jack Frost, da Avro Aircraft, Canadá, começou a trabalhar no projeto de uma aeronave V/TOL supersônico com uma asa circular. O Canadian Defense Research Board financiou o projeto, com um contrato de 400 mil dólares. A Capacidade V/TOL era para ser realizado pelos dutos de ar do fan e do escape do motor para a periferia da plataforma, desviando o fluxo de ar para baixo. Perto do chão, isso proporciona um efeito de “colchão de ar”, onde o peso excede a pressão devido ao aumento da pressão sobre a parte inferior da aeronave. Este fenômeno foi confirmado em um ensaio de túnel de vento. No trânsito para o voo em frente, o fluxo de ar seria gradualmente redistribuído para trás. Frost estava convencido de que um disco fino de asa circular, era o formato ideal de aproveitar tanto o efeito “colchão de ar” junto ao solo (para STOL) quanto para alcançar velocidades supersônicas.

Em 1954, o governo canadense abandonou o projeto por ser muito caro, mas o progresso que tinha sido feito era suficiente para interessar a Força Aérea dos Estados Unidos (USAF). A preocupação com a vulnerabilidade das bases aéreas na linha de frente da Europa, na Guerra Fria, aumentou o interesse da Força Aérea em aeronaves V/TOL. Por três quartos de milhão de dólares, o contrato foi firmado pela Força Aérea, em 1955, para um estudo mais aprofundado. Em 1956, a Avro ficou suficientemente satisfeita com os resultados para liberar 2,5 milhões de dólares para construir um protótipo do avião de pesquisa. Em Março de 1957, a Força Aérea aprovou um financiamento adicional, e o avião tornou-se, oficialmente, no "Sistema de Armas 606A".

Figura 2 - projeto 606A
Estes esforços permaneceram altamente classificados, como ultra-secretos, até julho de 1960. Uma das mais promissoras propostas foi o 606A (Figura 2) que teria uma asa fina circular de 35 metros de diâmetro, com peso máximo de 27.000 libras e uma velocidade de mais de Mach 1,4. Um grande motor turbofan era impulsionado pelo fluxo de gases de escape de seis motores turbojatos Armstrong Siddeley Viper.

Numerosos testes de túnel de vento, tanto na Avro quanto na base de teste da USAF em Wright Field, Ohio, foram conduzidos e uma plataforma de teste, em escala completa, do sistema de propulsão foi construído.

Figura 3: O Avrocar em voo, sob efeito solo
Em 1958, a Avro fez uma série de apresentações ao Exército e à Força Aérea dos Estados Unidos, após os quais a Avro começou um projeto de uma aeronave para o Exército dos Estados Unidos, à qual foi dada a designação oficial VZ-9. Foi batizado com o nome de Avrocar (Figura 4).
Figura 4 - VZ-9 Avrocar
O Avrocar deveria ser uma aeronave de plataforma circular, que efetuasse tanto voos pairados quanto voos horizontais em alta velocidade, com capacidade V/TOL. O Exército estava interessado na sobrevivência das tropas no campo de batalha e, a fim de melhorar sua capacidade aérea, estava estudando alternativas para suas aeronaves e helicópteros então em serviço.

A Força Aérea apoiou o programa Avrocar, porque iria demonstrar muitas das características do projeto do 606 A, em menor tempo e a um custo muito menor. Um contrato de dois milhões de dólares, a ser gerido pela Força Aérea foi feito à Avro para construir e testar um Avrocar.

Os requisitos de desempenho inicial para o Avrocar eram: ter capacidade de sustentar dez minutos de voo no efeito de solo e poder levar uma carga de 1000 libras, a 25 milhas de distância.

O trabalho começou a sério, e um contrato de 1,77 milhões de dólares foi concedido para construir um segundo exemplar do Avrocar, em Março de 1959. O primeiro Avrocar saiu da fábrica em Maio de 1959. No lançamento, a performance projetada foi muito além da exigência inicial, e atingiria uma velocidade máxima de 225 Kt, 10.000 pés de teto, 130 milhas de alcance com 1.000 kg de carga útil, e pairar fora do efeito solo, com 2.428 kg de carga útil. O peso máximo de decolagem, com transição para o voo à frente, fora do efeito de solo, era calculada em  5.650 libras, e o  peso máximo, com uma transição em efeito solo, seria de 6.970 libras.

O Avrocar tinha cerca de 18 metros de diâmetro, 3 metros de espessura do disco, e dois cockpits separados. A cabine do piloto foi localizada no lado esquerdo da frente da aeronave, com outro tripulante à direita. Um terceiro compartimento na parte de trás estava previsto para o armazenamento de carga. O Avrocar seria levantado pelo fluxo de um motor turbo-fan de cinco metros de diâmetro central, chamado de turbo-rotor de escape, composto de três turbojatos Continental J-69, com 920 libras de empuxo cada um, cujo fluxo de ar era canalizado para a borda exterior da turbo-rotor. Esse tinha 124 palhetas de pequeno porte. Cada motor era ligado aos seus próprios tanques de combustível e de óleo. Os tanques de combustível não eram interligados, embora isso tivesse planejado para uma versão posterior. 

O controle principal do piloto consistia de um side-stick, que proporcionava controle de arfagem e lateral, quando movimentado para frente e para trás ou lateralmente. O controle de guinada era obtido torcendo-se o side-stick. Essa ação controlava fluxos de baixa e alta pressão ao redor da aeronave, fazendo-a girar ao redor do eixo vertical.

No vôo para frente, o Avrocar era estaticamente instável, com um centro de pressão muito à frente do centro de gravidade. Um sistema de estabilização automática foi empregado, utilizando a ação giroscópica do turbo-rotor. O turbo-rotor, por sua vez, não era rigidamente fixado ao veículo, mas sim montado em uma espécie de rótula que lhe permitia liberdade de movimento. Cabos de comando foram ajustados à base do turbo-rotor, para permitir o seu controle.

O interesse do Exército no programa Avrocar era grande. Um dos autores pesquisados (Lindenbaum) recorda uma viagem que fez a Washington, no final dos anos 1950, para pedir um  financiamento adicional para um estudo sobre a redução da resistência aerodinâmica do helicóptero Bell UH-1. Embora o financiamento tivesse sido aprovado, ele ouviu uma observação, de um general do Exército, de que o Bell UH-1 Huey seria o último helicóptero que o Exército iria comprar, uma vez que o helicóptero seria substituído pelo Avrocar.

De junho a outubro de 1959, o primeiro Avrocar foi testado em uma plataforma estática, de voo pairado. Os gases quentes que recirculavam pelo turbo-rotor reduziam o empuxo. Perdas excessivas no sistema de dutos também se tornaram aparentes, e estes defeitos nunca foram sanados, apesar das grandes mudanças no design. A carga máxima atingida, fora do efeito solo, foi de 3.150 libras. Com um peso zero combustível (ZFW) de 4.285 libras, o Avrocar era, portanto, incapaz de pairar fora do efeito solo. Na sequência destes testes, o veículo foi enviado para NASA para a avaliação túnel de vento do Ames Research Center.

O segundo Avrocar saiu da fábrica em agosto de 1959. Em 29 de setembro, a primeira tentativa de voo sustentado foi feita com o Avrocar preso ao chão por cabos. Depois que o veículo decolou, uma oscilação incontrolável ocorreu, com cada uma das rodas saltando alternadamente no chão. O piloto imediatamente  desligou todos os motores. Posteriormente, vários esquemas alternativos, nesses voos "cativos", foram testados e inúmeras alterações foram feitas para as molas do spoilers e do controle da base do eixo do rotor.    Estes primeiros vôos cativos revelaram, então, um novo problema, denominado "hubcapping", que nunca foi totalmente resolvido. O hubcapping era uma oscilação rápida e imprevisível nos eixos de arfagem e rolamento. Ele resultou em um colchão de ar instável, se o veículo excedesse uma altura crítica (Figura 5).
Figura 5: altitude crítica do Avrocar, e o hubcapping
A altura crítica era encontrada a cerca de dois metros do chão. Inputs nos controles foram ineficazes no amortecimento da oscilação. Cinqüenta e dois buracos foram perfurados na parte inferior do veículo, localizado radialmente e a três metros do centro. Estes foram usados para proporcionar um fluxo de ar para centrar e tentar estabilizar o colchão de ar. Tal dispositivo nunca alcançou o sucesso esperado.
Figura 6: O VZ-9 Avrocar
O primeiro voo completamente livre ocorreu em 12 de novembro de 1959, e o sistema de controle, baseado em bicos ajustáveis de saída de ar, revelou-se inaceitável. Depois de cinco vôos, o teste foi temporariamente interrompido em 5 de dezembro de 1959, quando o Avrocar já havia registrado 18,5 horas de teste, em voos cativos e livres.

Um novo sistema de controle, centrado em um conjunto em forma de anel, foi instalado mais tarde, em dezembro. A abertura do bico à superfície superior foi coberta, e os spoilers foram substituídos por um anel liso na parte inferior do veículo. As alterações laterais na posição do anel aumentaram o peso em um lado do veículo enquanto diminui peso do lado oposto.

Testes de vôo foram retomados em janeiro de 1960, com este sistema. A avaliação de vôo da Força Aérea foi realizada em 4 de abril de 1960, com o Major Walter Hodgson nos controles. A velocidade máxima alcançada foi de 30 Kts, e acima dessa velocidade, uma oscilação incontrolável se manifestava. O cockpit era apertado, barulhento e tornava-se insuportavelmente quente durante um vôo de apenas 15 minutos. Mais tarde, naquele mês, um ensaio foi conduzido em túnel de vento da NASA do Ames Research Center, em Moffet Field.

Este teste descobriu que o anel de controle centrado no sistema fornecia empuxo suficiente para possibilitar um vôo fora do efeito solo, mas grandes ângulos de ataque foram necessários para gerar sustentação aerodinâmica.  No final de abril, no entanto, o programa inicial do Avrocar chegou ao fim. Pouco tempo depois, o programa foi desclassificado pelo QG da USAF.

A Avro estava convencida de que o conceito ainda era viável, e propôs um novo programa para retrabalhar as principais falhas do sistema de propulsão e de controle (Figura 7).

Figura 7: Sistema de controle de alta velocidade
A USAF  fez um novo contrato para o período de julho de 1960 a julho de 1961, para a modificação e testes de ambos os veículos. Um bico de controle novo foi instalado na parte de trás do veículo. 

Um segundo ensaio no túnel de vento, com a nova configuração foi realizado na NASA no Ames RC em abril de 1961. Verificou-se que um controle suficiente estava disponível para a transição a uma velocidade de cerca de 100 Kts, e o vôo foi possível a esta velocidade. No entanto, o veículo ainda era instável. Esperava-se que a alteração do fluxo sobre a parte de trás do veículo  levantasse o nariz para cima, reduzindo a instabilidade. Infelizmente, este não foi  o caso.

Uma empenagem em "T" foi adicionada (Figura 8), mas revelou-se totalmente ineficaz. A NASA acredita que essa falha resultou do fato de que a cauda estava em uma região de “downwash” muito alta causada pelo sistema de propulsão. Em qualquer caso, ficou claro que o Avrocar, conforme configurado, não poderia sustentar o vôo de alta velocidade.

Figura 8: o Avrocar com uma empenagem em T adicionada
Em 9 de junho de 1961, a avaliação final e segundo vôo da Força Aérea do Avrocar foi conduzido nas instalações Avro. Durante estes testes, o veículo atingiu uma velocidade máxima de 20 Kts e mostrou a capacidade de atravessar uma vala de seis metros de largura e 18 centímetros de profundidade. Voar acima da altura crítica era impossível. O relatório de ensaios em vôo resumiu uma série de problemas de controle. Por exemplo, uma grande assimetria no controle direcional estava presente. Cinco segundos eram necessários para virar a aeronave 90 graus para a esquerda, enquanto onze segundos eram necessários para uma curva à direita de 90 graus.  
Figura 9: Asas e winglets adicionados ao Avrocar
A Avro apresentou propostas de modificação radical do veículo para abordar os principais problemas. Frost (membro da equipe) desenvolveu dois novos modelos, um com uma grande cauda vertical e outra com winglets verticais (Figura 9). Ambos os modelos utilizariam dois turbojatos GE J-85 de 2700 libras de empuxo, em vez das três turbinas J-69 originais, e o diâmetro do turbo-rotor seria aumentado de cinco para seis pés. As propostas foram rejeitadas, e o programa foi oficialmente encerrado em dezembro de 1961. O segundo Avrocar tinha registrado cerca de 75 horas de vôo.

 CONCLUSÃO

 O conceito de efeito solo produzido por um fan na decolagem e de pouso não morreu com o Avrocar. Em 1963, a Bell Aerospace iniciou os estudos de um sistema de pouso por colchão de ar (ACLS), que mais tarde foi patenteado. Estes estudos foram dirigidos por T. Desmond Conde, ex-chefe de aerodinâmica para o Avrocar.

Um ACLS substitui o trem de pouso convencional, com um grande tubo interno de borracha-como a estrutura que envolve uma região de maior pressão de ar. Em agosto de 1967, o conceito foi provado pela Bell, com testes bem sucedidos em um LA-4 (avião anfíbio). O desenvolvimento foi financiado pela Força Aérea Flight Dynamics Laboratory, e um sistema muito maior foi projetado para testes em um Fairchild C-119 (peso de 64.000 lb). 

O governo brasileiro aderiu ao programa e uma aeronave De Havilland C-115 Bufalo, pesando 41.000 libras, foi selecionada para mais testes. Com a designação XC-8A, esta aeronave voou com o ACLS em março 1975. O ACLS foi considerado, mas rejeitado, como uma opção para o programa de uma aeronave STOL/Médio Avançado, um programa que terminou por produzir os protótipos Boeing YC-14 e McDonnell Douglas YC-15. Este último foi aprovado e evoluiu para o Boeing C-17 de transporte, que entrou em produção em série.

O conceito de um fan elevador, impulsionado por um motor turbojato não morreu, e vive hoje como um componente chave da Lockheed X-35 Joint Strike Fighter Contendor. Enquanto o Avrocar estava em desenvolvimento, Peter Kappus, da General Electric desenvolveu, independentemente, um sistema elevatório de propulsão por fan, que evoluiu para o GE Ryan VZ-11 (mais tarde XV-5) "Vertifan". Este veículo, discutido em duas edições anteriores da revista Vertiflite (Março/Abril de 1990, Março/Abril de 1996), abriu o caminho para mais estudos dos “fans elevadores”, ou fans sustentadores, como o estudo de caças supersônico patrocinado pela DARPA que incluiu tanto fans impulsionados a gás (McDonnell Douglas) quanto acionados mecanicamente por eixo (Lockheed).

REFERÊNCIAS
CAMPAGNA, Palmiro. The UFO Files: The Canadian Connection Exposed. Toronto: Stoddart Publishing (1998).  
ROSE, Bill and BUTTLER, Tony. Flying Saucer Aircraft (Secret Projects) (2007).
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(Autora do artigo: Desire Francine Gobato – Bacharel em Ciências Aeronáuticas pela Universidade Norte do Paraná - UNOPAR - 2010)