Poucas aeronaves individuais, na ainda curta história da aviação, merecem algum destaque especial. Entretanto, algumas parecem superar o status de ser uma simples máquina voadora para ter, até mesmo, algum tipo de alma. O Fairchild C-82 Packet N9701F, apelidado de "Ontos" quando voava como "oficina volante na empresa aérea TWA, sem dúvida, é uma dessas máquinas.
Os Fairchild C-82 Packets foram típicos transportes militares do período pós-Segunda Guerra Mundial. Chamavam atenção pela sua configuração não convencional, e não chegaram a ser muito populares entre os pilotos, devido ao grande tamanho e peso em relação aos motores, que pareciam muito fracos e que tornavam qualquer decolagem em uma grande aventura.
Esses bimotores tinham uma fuselagem central, com grandes portas de carga na parte traseira, o que permitia até mesmo o transporte de veículos. A empenagem dupla era fixada a dois "boons" que eram, na verdade, extensões da estrutura da nacele dos motores. A asa e a cauda bem elevadas proporcionavam boas condições de carregamento e segurança para lançamento de tropas paraquedistas. A Força Aérea do Exército dos Estados Unidos, posteriormente Força Aérea dos Estados Unidos (USAF), usou esses aviões, relativamente bem sucedidos, de junho de 1945 até 1954, e várias células foram vendidos no mercado de aeronaves civis pelo mundo afora, depois da sua desativação como aeronave militar.
O N9701F, apelidado de "Ontos" ("A Coisa", em grego antigo), foi um desses aviões vendidos pela USAF aos civis. É o mais famoso, o mais fotografado e o mais bem sucedido C-82 do mundo, entre todos os 223 que foram fabricados até 1948.
O Ontos começou sua vida operacional como 45-57814, e foi entregue à USAF no dia 26 de março de 1948. Foi inicialmente utilizado pelo 316º Troop Carrier Group, baseado em Greenville AFB, na Carolina do Norte. Passou depois para o 316º Maintenance & Supply Group, ainda baseado em Greenville, até ser transferido para bases americanas na Terra Nova e em Labrador, onde serviu até junho de 1953, quando foi praticamente desativado e enviado para Kelly AFB, no Texas, no San Antonio Air Material Command. Pouco mais de um ano depois, em 6 de julho de 1954, foi baixado do inventário da Força Aérea como excedente, e ficou disponível para o mercado.
Em 30 de junho de 1955, o avião foi comprado pela empresa Aerodex Inc., de Miami, Flórida, e matriculada no FAA como N2047A. A Aerodex era negociante de aeronaves, e logo vendeu o C-82 para a L.B. Smith Aircraft Corporation, outro negociante, que acabou vendendo o avião para a empresa Selk Company, em North Hollywood, California, em 25 de agosto de 1955.
Finalmente, em 14 de abril de 1956, o C-82 foi adquirido pela TWA - Trans World Airlines Inc., de Kansas City, que pretendia usar o avião como oficina voadora, para atender aeronaves com problemas de manutenção na Europa.
Em 30 de junho de 1955, o avião foi comprado pela empresa Aerodex Inc., de Miami, Flórida, e matriculada no FAA como N2047A. A Aerodex era negociante de aeronaves, e logo vendeu o C-82 para a L.B. Smith Aircraft Corporation, outro negociante, que acabou vendendo o avião para a empresa Selk Company, em North Hollywood, California, em 25 de agosto de 1955.
Finalmente, em 14 de abril de 1956, o C-82 foi adquirido pela TWA - Trans World Airlines Inc., de Kansas City, que pretendia usar o avião como oficina voadora, para atender aeronaves com problemas de manutenção na Europa.
De fato, era necessário usar uma aeronave para esse serviço, pois nessa época, os últimos grandes aviões com motores a pistão usavam motores altamente problemáticos, como os famigerados Wright R-3350 com turbo compound, muito potentes, mas também muito temperamentais, usados nos Lockheed Super Constellation da TWA. Esses motores eram tão problemáticos que acabaram dando ao avião o apelido, nada lisonjeiro, de "o melhor trimotor do mundo". Uma aeronave capaz de transportar motores através da Europa significaria aumentar a disponibilidade dos aviões em menos tempo, como também evitar custos de levar motores dos Estados Unidos para a Europa com urgência.
A TWA transformou o C-82 em uma verdadeira estação de reparação voadora. O avião foi restaurado e reequipado, no aeroporto de Orly, nos arredores de Paris, que seria sua base de operação. Os motores originais foram substituídos por novos motores Pratt & Whitney R2800CB4, de 2400 HP, e isso significou 600 HP acrescentados ao avião em relação ao original. Novas hélices também foram instaladas, para melhor aproveitamento da potência.
Para aumentar o desempenho do avião, especialmente nas decolagem com carga máxima, a TWA instalou, no topo da fuselagem, um motor a jato auxiliar Fairchild J44, de 1000 libras de empuxo. Os sistemas elétricos, de combustível, aquecimento, instrumentos e navegação foram atualizados para o padrão mais moderno então existente, em uso nos Super Constellations da empresa à época.
Vários equipamentos de manutenção remota, incluindo uma APU - Auxiliary Power Unit, foram acrescentados ao C-82, permitindo o uso de recursos de uma grande oficina em qualquer lugar onde fosse necessário. Curiosamente, a APU era propulsionada por um motor Volkswagen de 4 cilindros, automotivo.
Tais modificações levaram o peso vazio do avião ao total de 36.595 libras, mas mesmo assim o desempenho ficou muito superior. As grandes dimensões do compartimento de carga permitia transportar conjuntos moto-propulsores completos, em tempo muito curto, reduzindo o tempo de indisponibilidade, especialmente dos Super Constellations.
A TWA contratou uma tripulação francesa para o avião, comandada por Claude Girard. Girard atou praticamente durante toda a carreira do avião na Europa, que durou praticamente 16 anos. Isso agilizou a operação europeia, eliminando barreiras de idioma, então bem comuns e que atrapalhavam bastante.
O Ontos em Orly, 1969 |
A era do jato começou em 1959, para a TWA. O C-82 também passou a atender os novos jatos, tão problemáticos em termos de manutenção quando os últimos motores a pistão, a tal ponto que alguns chegaram a levar um motor extra pendurados numa nacele sob as asas. O C-82 conseguia levar dois motores Pratt & Whitney JT-3A, usados nos Boeing 707, completos.
O Ontos de prontidão. Era visto em todos os principais aeroportos da Europa |
Voar o Ontos através da Europa não era uma tarefa fácil. O velho avião tinha suas manias. Demorava a acelerar e seus comandos eram bem lentos. Operar com vento cruzado era um verdadeiro desafio. O motor a jato era ligado só na corrida de decolagem, e tão logo o avião ganhava alguma altura, era desligado, pois consumia muito combustível, a mesma gasolina dos motores a pistão. O jato não tinha manete, quando ligado só operava na potência máxima, e não podia ser reduzido, somente desligado.
Ao fundo, o C-82 e seus clientes, um Starliner eum Boeing 707 |
Embora sua missão principal fosse atender as aeronaves na Europa, o Ontos atendeu missões em lugares tão distantes quanto Bombaim, na Índia, um voo de 58 horas de duração, e até Manila, nas Filipinas, 112 horas de voo durante a missão.
Cockpit do N9701F |
A carreira do avião foi muito feliz, mas não foi isenta de panes. Num voo para Manila, o avião teve que fazer um pouso monomotor em Bangkok, na Tailândia. Em Shannon, na Irlanda, o avião perdeu os freios devido a uma falha hidráulica e varou a pista, atolando no lodaçal, mas sem maiores consequências.
A tripulação normal do Ontos era de dois pilotos, três mecânicos e um supervisor de manutenção. O avião era mantido de prontidão 24 horas por dia, e conjuntos moto-propulsores eram deixados de prontidão já embalados, prontos para o embarque.
Em 28 de outubro de 1961, a TWA encerrou os voos para a Europa com aviões de motores a pistão. Isso significou menos trabalho para o Ontos, devido à maior confiabilidade dos motores a jato, mas continuou sendo muito útil. Devido à maior complexidade dos jatos, era comum o Ontos levar suprimentos e componentes essenciais para manter as aeronaves em voo. Até comissários de voo foram transportados em algumas situações.
As missões do Ontos, mais disponível depois do encerramento da operação com os Constellations e seus temperamentais motores, foram estendidas para mais lugares, como a África e a Ásia, até o distante Vietnam.
Em 1968, uma greve dos petroleiros na França obrigou a maioria das empresas a cancelar seus voos. A TWA conseguiu burlar a greve, usando uma base aérea militar ao sul de Orly, não afetada pela greve, e usando o Ontos para transportar todo o equipamento de solo necessário.
Em 1970, a TWA começou a operar aeronaves Boeing 747-100. Não demorou muito tempo até que o Ontos fosse designado para uma missão inédita: transportar um motor turbofan Pratt & Whitney JT-9D. Ainda que o compartimento de carga do C-82 fosse muito grande, o motor do 747 é enorme. Os mecânicos, antes de aceitar o desafio, fizeram um gabarito em madeira, nas dimensões externas do motor, e viram que era possível transportar, embora com uma folga mínima, apenas uma polegada de todas os lados. E a missão foi feita.
O motor JT-9D de um Boeing 747 mal cabia no compartimento de carga do Ontos |
Por essa época, o nome Ontos foi removido da fuselagem do avião, pois descobriram que a fonética dessa palavra era muito parecida com a palavra francesa "honteaux", que significa "vergonhoso".
Decolagem do Ontos. Seu desempenho era superior ao dos C-82 padrão |
A TWA aposentou o avião em 1972. A melhor confiabilidade dos motores a jato na época diminuiu drasticamente a necessidade de trocas de motores e o avião tornou-se ocioso e dispendioso demais para ser mantido em operação. A TWA mandou o avião de Orly para Melun-Villaroche em 13 de janeiro de 1972, para ser armazenado. Entretanto, a carreira do velho C-82 estava longe de terminar.
Desativado pela TWA, o Ontos aguarda um comprador |
Pouco mais de um ano depois, em 30 de janeiro de 1973, a Steward & Davis Inc., de Long Beach, Califórnia, que comprou e fez o translado do avião para a suas instalações. A empresa remotorizou o C-82 com motores R2800CB16 e um jetpack Westinghouse J3400B, e o vendeu para a Briles Wing & Helicopter, do Oregon, para entregar helicópteros completos ou seus componentes, em 20 de fevereiro de 1973. O velho avião fez muitas viagens para entregar helicópteros, principalmente na América do Sul, e chegou a fazer uma viagem à Austrália para entregar um Bell 205 a um cliente.
O C-82 nas cores da Briles Wingg & Helicopter |
Em 1º de maio de 1978, o avião foi vendido para a Balls & Brothers Inc., que utilizou o C-82 para transporte de carga no Alaska, estado onde teve uma longa carreira. Mas, entre 1980 e 1982, sofreu uma série de problemas e incidentes no táxi em em pousos, e foi paralisado. Em 20 de dezembro de 1982 foi vendido para a Northern Pacific Transport Inc., de Anchorage, Alaska.
O problemas continuaram, e o avião acabou sofrendo com uma retração acidental do trem de pouso, em 1983, mas sofreu poucos danos e foi recolocado em voo. A velho avião já estava em serviço há 35 anos.
O avião foi repassado em 1987 para a Alaska Aircrafts Leasing Inc, mas essa empresa faliu em 1992 e seus ativos foram retomados pelo First National Bank of Anchorage.
O banco ofereceu a aeronave ao mercado, e um interessado apareceu, a Hawker & Powers Aviation Inc., de Greybull, Wyoming. O avião, apesar da idade, estava em boa forma, praticamente sem corrosão e com motores ainda novos, e a empresa comprou o avião, para ser usado como aeronave bombeiro, para apagar incêndios florestais.
O N9701F, na época em que era operado pela Hawkers & Powers |
A Hawkers & Powers usou o avião até 2005, quando fechou as suas portas, tornando-se o último operador do tipo no mundo. O avião foi leiloado e terminou sendo adquirido pelo Hagerstown Museum, de Maryland, em 23 de agosto de 2006, que pagou 127.500 dólares pelo avião, o último C-82 aeronavegável do mundo.
O N9701F em vista a Oshkosh, quando era da Hawkers & Powers |
O N9701F agora descansa no museu, em Hagerstown, Maryland |
O N9701A foi pintado com seu antigo esquema militar, mas ainda é visível o esquema do seu maior e mais célebre operador, a TWA. Sem dúvida alguma, é o C-82 melhor conservado no mundo todo, o mais famoso e o mais bem sucedido da história, cuja carreira durou nada menos que 57 anos.
histórias que merecem ser contadas, muito bom
ResponderExcluirNo Brasil,no Rio de Janeiro,no Campo dos Afonsos,na Base Aérea dos Afonsos,de jul./66 a dez.67,como S2 e S1,ajudei na MNT dos que,então operavam no 1/1 GTT;aos poucos,foram substituídos pelos C-115,Búfalo...
ResponderExcluirDemais!
ResponderExcluirQue história incrível!
E mais incrível ainda é saber que o blog está vivo!
Obrigado pelo post!
Feliz em ler matérias deste gabarito novamente aqui no blog. Parabéns e bem vindo de volta!
ResponderExcluirQue texto e histórias exemplares, um ótimo retorno à ativo do Blog.
ResponderExcluirAbraço!
Texto incrível, obrigado por produzir algo de tão alta qualidade e compartilhar!
ResponderExcluirA história da aviação é maravilhosa!!!!
ResponderExcluirProfessor, esse é o avião do filme "o voo da fênix", não é? O mesmo modelo quero dizer.
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