Um herói que esteve entre nós! - Pesquisa e Texto de Joaquim Domingues
Foto: Werner Fischdik - 1978 |
Na noite de 5/junho/1944, oitocentos e sessenta e quatro C-47 Skytrains decolaram de bases na Inglaterra. Se fosse possível encostar asa com asa de todos esses aviões, a envergadura total somaria 25 quilômetros!
Essa foi a gigantesca armada aérea que transportou os 13.100 paraquedistas da 101ª e 82ª Airborne, que saltaram na madrugada do dia 6/junho/1944 na Normandia, precedendo a histórica invasão do Dia D.
1942: Fábrica da Douglas Aircraft em Long Beach, California, EUA: onde o C-47A-65-DL, sn 42-100530 foi construído e abaixo já com suas marcações e nose art, durante a Segunda Guerra Mundial. |
Os pilotos estavam com medo. Para a maioria ia ser a primeira missão de combate. Eles não tinham sido treinados para voos noturnos, nem para fazer frente ao fogo antiaéreo ou ao mau tempo. Seus C-47 não eram blindados, nem armados e os tanques de gasolina não eram protegidos nem autovedantes.
Foi espantoso e parte do maior espetáculo jamais encenado, cruzando o canal a 150 metros ou menos de altura. Imagine 864 aviões voando numa formação V-de-V, estendida através do céu por 480 quilômetros de comprimento, sem radiocomunicação!
Ao cruzar a costa atingiram um bloco compacto de nuvens e perderam totalmente a visibilidade. Os pilotos separam-se instintivamente, alguns descendo, outros subindo, grupos girando para a esquerda e direita, temendo colisões.
1944: O S6M com as cores e insignias do 436th Troop Carrier Group. A foto do nariz do C-47, destacando a nose art, foi gentilmente cedida pelo Hans D Brok. Arte Rudnei Dias da Cunha. |
Súbito, para usar as palavras de muitos pilotos, “as portas do inferno se abriram”. Holofotes, traçantes e explosões enchiam o céu. Um dos pilotos, disse mais tarde, que o pavor foi tanto que a saliva na sua boca secou completamente, grudando o chiclete nos dentes.
Parecia ser impossível voar através daquela muralha de fogo sem ser alvejado. As traçantes enchiam o espaço com luzes laranjas, vermelhas, azuis, amarelas e levando-se em conta que a cada seis tiros, um era traçante, os pilotos não imaginavam como poderiam sobreviver àquilo.
Interessante documento, mostrando a formação do 436th Troop Carrier Group e a posição do C-47 nº 42-100530 do Capitão Shelby L. Surratt. Dia D. |
Mas, não havia escolha, não havia retorno. Em dois dias de operações, quarenta e dois C-47 não voltaram.
Fazendo parte dessa gigantesca armada aérea estava o C-47 nº 42-100530, matrícula “S6-M” do 436th Troop Carrier Group, pilotado pelo Capitão Shelby L. Surratt.
Depois de participar da histórica ação do Dia-D, três meses depois, em setembro/1944, o “S6-M” esteve em outra importante operação - Market & Garden - e, por fim, atuou nas operações de transposição do Rio Reno, fato que marcou o colapso das forças armadas da Alemanha e o fim da guerra na Europa.
Após o conflito, o 42-100530 veio para o Brasil e trocou o uniforme da USAAF pelo da FAB. Aqui ele ganhou novas cores e o nº 2052 pintado no leme verde e amarelo.
1950: Já na FAB, o 2052 pertencente ao 1º Grupo de Transporte em Pesqueira, Pernambuco. Arte Rudnei Dias da Cunha. |
Foi protagonista de outro importante fato histórico: levou o Presidente Juscelino Kubitschek onde seria construída a nova Capital Federal, Brasília, sendo o primeiro avião da FAB a pousar naquela região. Nos anos seguintes cumpriu missões para o 1º Grupo de Transporte Especial.
No final dos anos 70, o valente C-47 deixou para sempre a vida militar e tornou-se civil, prefixo PT-KVN, propriedade da Andrade Gutierrez S/A.
Após muitos anos de serviços prestados aqui no Brasil, foi embora para sempre, trabalhar para a TASJ-Transporte Aéreo San Jorge na Bolívia, com prefixo CP-1960.
1965: O C-47 / 2052, Esquadrão de Transporte Especial da FAB. Foto cedida pelo A. Camazano A. Arte Rudnei Dias da Cunha. |
No dia 2/novembro/1992, durante um voo de testes, o CP-1960 teve uma pane num dos motores, obrigando a um pouso forçado em Trinidad. Provavelmente, a partir desse fato, o DC-3 não foi mais operado, mantendo-se, porém, em bom estado de conservação.
1978: Na vida civil como PT-KVN da Andrade-Gutierrez S.A. Arte Rudnei Dias da Cunha. |
No dia 21/abril/2012, seu novo proprietário, Capitão Luis Ortiz Fernandez, decolou do Aeroporto de Viru Viru em Santa Cruz de la Sierra, com destino a Trinidad, com a missão de recuperar o CP-1960 para condições de voo. Sete minutos após a decolagem o Curtiss C-46 que pilotava caiu, matando o Capitão Fernandez, além do co-piloto Geral Ortiz e o mecânico Torrez Ángeles. Com essa tragédia, o destino do CP-1960 tornou-se incerto, e o avião ficou entregue às intempéries por vários anos.
1980: Na Bolívia, trabalhando para a Transporte Aereo San Jorge, como CP-1960. Arte Rudnei Dias da Cunha. |
Em 2013 e 2017, houve mais duas tentativas sem sucesso para fazer o avião voltar a voar e, após isso, o velho C-47 / DC-3 permaneceu estacionado em meio nos arredores do Aeropuerto Jorge Henrich Arauz em Trinidad, Bolivia, deteriorando-se ao ar livre, o que parecia ser um triste fim de um herói que esteve entre nós.
Em junho/2022, contudo, uma reviravolta no destino do bimotor, marcou nova fase da sua existência. Numa feliz iniciativa da comunidade da cidade de Trinidad e como uma homenagem ao Capitão Luis Ortiz Fernandez, o valente avião foi retirado do mato que o cercava, transportado, remontado e restaurado para sua exposição estática. Uma praça inteira foi montada em volta do heroico C-47 / DC-3, que passou a ser monumento histórico-cultural daquela cidade.
Nós que imaginávamos um fim inglório ao ex- USAAF 42-100530, FAB 2052, PT-KVN e, finalmente, CP-1960 agora ele é parte integrante da cidade de Trinidad, que soube valorizar e preservar um importante pedaço da história aeronáutica. Nossas congratulações aos irmãos bolivianos pela iniciativa.
Junho/2022: o CP-1960 sendo transportado para seu novo lugar de descanso. |
O ex-USAAF 42-100530, FAB 2052, PT-KVN e, finalmente, CP-1960, agora está dignamente exposto na Plaza el Aviador em Trinidad, Bolívia. |
Sinto-me lisonjeado de ver um trabalho, aqui publicado. Foram meses de trabalho e pesquisa onde pude contar com o auxílio de muitas pessoas, inclusive pesquisadores no exterior. Valeu Jonas!
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